Crónica
UM AZUL DE TODOS NÓS
A peça em questão, Azul Longe Nas Colinas, de Dennis Potter, foi levada a cena pelo grupo de teatro in skené. A encenação esteve a cargo de João Ferreira.
O frio e o fumo que se instalam na sala dão origem a uma neblina inicial que nada auspicia de bom. É com esta mise en scène inicial que somos recebidos no auditório de Gondomar. Nos primeiros minutos de peça, a estranheza toma conta de nós ao vermos adultos a representar crianças de sete anos, em brincadeiras banais da idade, num bosque durante as férias de verão. Rapidamente nos deixamos levar pela ficção e aceitamos a fantasia e poeticidade do azul da infância. É para lá que somos levados.
Dennis Potter afirma que esta é a peça mais simples que escreveu, quer na forma, quer no conteúdo. Ironicamente, de simples este texto nada tem. Ao longo da peça oscilamos entre o riso (destaque-se o brilhante desempenho de Emanuel Rocha na pele de Willie) e a seriedade perante o que vamos ouvindo. Esta aparente simplicidade de conteúdo dará lugar a uma série de questões à medida que nos deixamos levar pelas brincadeiras inquietas das personagens. Os jogos pueris dão origem a outros jogos complexos.
A dualidade criança/adulto com a qual somos, desde logo, confrontados revela-se extremamente problemática. Estas crianças brincam às guerras, aos pais, às mães, aos enfermeiros, reproduzindo o que pensam ser a vida dos adultos. A infância é-nos apresentada como um espaço que não é necessariamente de inocência. As constantes alusões ao comportamento dos soldados da segunda guerra mundial, como modelo de bravura imposto, revelam a necessidade de ver e compreender o mundo imitando a realidade dos mais crescidos. Estes surgem como heróis. Mas é também dos adultos que as crianças recebem os medos. O medo está, de resto, sempre presente na peça. É uma nuvem constante a pairar sobre as colinas.
Para além do jogo de idades, cria-se igualmente um outro jogo: a duplicidade do tempo e do espaço. Somos levados a imaginar a sociedade e a mentalidade da época através das crianças que são, na verdade, os mensageiros. A peça não fica presa a esse espaço nem a esse tempo, esta revela-se atemporal por estar irremediavelmente ligada ao comportamento humano. A tragédia estende-se, igualmente, aos animais na peça. Todos eles estão em sacrifício: o esquilo, o cão Rover e, vítima em todos os momentos, o pato. O Donald.
O momento em que os atores se dirigem ao público, referindo inclusive a palavra “auditório”, concretiza a passagem a um terceiro espaço. O terceiro elemento, o Outro, o que observa, torna-se parte integrante do jogo de culpa/inocência.
Sentimos todos os momentos de angústia. O cenário e a música desempenharam um papel fundamental para a construção de um espaço e de um tempo carregados de tragédia, que acabou por atravessar o auditório e nos transportou não só para os anos 40, mas para a realidade de cada um de nós. A nossa imaginação transportou-nos para o que poderia estar para lá das colinas, os pupilos mensageiros conseguiram induzir a construção de um outro cenário, o dos adultos.
A culpa que atravessa toda a obra revela-se, assim, numa tríade. Não só a culpa dos adultos por transmitirem modelos e valores que as crianças reproduzem, mas também a culpa que este grupo de crianças terá de carregar pelo pacto de silêncio acerca do que aconteceu a Donald. O terceiro elemento, o espetador, fecha a tríade pela cumplicidade que carrega.
Em suma, todos acabamos por ser agentes de inocência e de maldade pelas ações que praticamos e os papéis que representamos e, no final, sabemos que “há caminhos da nossa alegria aos quais não sabemos voltar” porque é inevitável que assim seja.