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A Minha Vida Dava Um Filme: do Spotify para o palco do Hard Club

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Depois de duas noites em Lisboa no Teatro Villaret com o cartoonista Hugo Van der Ding e a apresentadora Inês Lopes Gonçalves, A Minha Vida Dava Um Filme ao vivo chegou ao Porto e contou com a presença de Francisco Geraldes, jogador de futebol e a rapper portuense Capicua.

Em ambas as noites, o toque das apresentadoras fez-se sentir até nos momentos que antecederam as suas entradas. Ao burburinho próprio da entrada na sala juntou-se uma playlist de hip-hop preparada por Joana Miranda, numa sonoridade que ambientava o público para conversas que passaram pelo existencialismo habitual das duas, cinema, literatura e, até, novelas brasileiras.

A primeira noite assumiu um registo leve. Inês Gonçalves, antes ainda da chamada do convidado ao palco, aproveitou para congratular a avó, aniversariante naquela segunda-feira. Feita a homenagem a Maria Inácia, chegou Francisco Geraldes, descrito pelas apresentadoras como o “futebolista ousado que lançou um livro de poesia aos 26 anos”.

Fotografia retirada do Instagram de Inês Gonçalves

A conversa começou com o tema da própria apresentação do convidado: a “audácia de escrever um livro de poesia”. O jogador e autor falou sobre o processo de criação poética. Sinto, Longe, Tarde (título da obra) nasceu da sua “doença existencial” extrapolada por escrito para um bloco de notas. O existencialismo do livro de Geraldes transportou-se para a conversa e a pergunta “O que é que eu sou?”, embalada pela série BoJack Horseman, virou tema central.

Rapidamente, e foi assim a noite toda, o tema mudou. Falou-se sobre a importância do dinheiro para a felicidade, de Deus, de religião ou política numa conversa, ao contrário do que se esperaria pelo peso habitual dos assuntos, poucas vezes séria e muito descontraída onde a vontade de animar o público se sobrepôs à vontade de adensar os assuntos.

Como todos os convidados, o jogador trouxe alguns filmes que serviriam de mote para conversa: V for Vendetta (2005) que, inclusive, serviu de inspiração para uma das suas tatuagens e Fight Club (1999). Serviriam de mote, mas, na realidade, rapidamente se dissiparam na conversa e não foram mais relembrados.

Para terminar, como em todos os quatro espetáculos ao vivo, os três fizeram um jogo que ressuscitou a temática cinematográfica na conversa. Num desafio que consistia em reconhecer o nome e o ator do filme a partir de um excerto de um qualquer grande clássico do cinema quer internacional, quer português, foram postos à prova os conhecimentos dos três em palco que se mostraram capazes de reconhecer filmes como Forrest Gump (1994), Trainspotting (1996) ou Pátio das Cantigas (2015) e as vozes de Tom Hanks, Ewan McGregor ou Miguel Guilherme.

Para a noite seguinte, “as mais poderosas apresentadoras de podcast em Portugal” (assim apresentadas por Catarina Moreira) tinham encontro marcado às 19h00 com Capicua. E se há quem se possa queixar da falta de substância da noite anterior, a rapper portuense, autora de discos como Sereia Louca (2014) ou Madrepérola (2020), trouxe o outro lado da moeda deste podcast. Trouxe cultura, conhecimento, experiências e captou, do primeiro ao último segundo, os espectadores numa conversa pincelada quase sempre de momentos de pertinência e importantes reflexões.

A conversa começou no passado de Capicua no mundo do grafiti. A portuense, com um passado como writer, falou sobre a importância da sua participação no movimento da street art na sua visão sobre a cidade e para a entrada no mundo hip-hop.

“Guardo muito boas recordações do grafiti porque quem é do grafiti tem outra relação com a cidade, e com o espaço em geral, porque é como se lesses a paisagem uma camada acima, uma camada onde as outras pessoas não estão a prestar atenção. Ficamos a reparar nos grafitis que outras pessoas fizeram nas casas abandonadas, nas fábricas abandonadas, nas autoestradas além de que temos uma relação com a cidade a uma hora em que não está mais ninguém na rua.”

Da street art avançou-se para a cultura hip-hop, da forma como se pulverizou o sentido de comunidade na cultura pela chegada da música aos ouvidos das massas e ao mainstream.

“O hip-hop antes era uma tribo, hoje em dia quase toda a gente gosta de um rapper, de uma banda, mas claro que há sempre um núcleo duro. Se fizeres uma festa de hip-hop aqui no Hard Club vais encontrar essas pessoas que ainda são a tribo, mas num festival se vires um nome mais mainstream essas pessoas vão-se misturar com uma multidão enorme de pessoas que gostam de hip-hop de forma menos militante. Mas faz parte da evolução, não sou saudosista.”

Capicua trouxe para esta noite de terça-feira três filmes brasileiros: Sal da Terra (2014), Aquarius (2016) e A Que Horas Ela Volta (2015). Porém, foi do primeiro que partiu e continuou quase toda a conversa do resto do podcast. O filme de Sebastião Salgado levou a conversa para outros terrenos. “O resgate da trégua para vermos a esperança” é a mensagem que Capicua traz do filme e que convidou às reflexões das três mulheres em palco sobre o tratamento da história em relação às navegações e às pessoas escravizadas, a importância da arte na mudança da sensibilidade e empatia das pessoas, sobre o posicionamento público dos artistas nas causas sociais ou a participação feminina em espaços de debate.

Antes do jogo conclusivo, houve tempo ainda para falar de guilty pleasures e sobre a ligação da rapper com o Brasil onde recordou tempos de estúdio no Brasil com os rappers brasileiros Rael e Emicida e o português Valete aquando da gravação do álbum Terra Franca e o seu consumo de novelas brasileiras.

No desafio final, Joana, Inês e Capicua tentaram, com mais ou menos sucesso, adivinhar a que filmes e atores pertenciam os excertos ecoados nas colunas do Hard Club. Patrick Swayze no filme Dirty Dancing (1987), Jorge Corrula e Soraia Chaves em O Crime do Padre Amaro (2005) ou Julia Roberts em Notting Hill (1999).

À conversa com o JUP no final do espetáculo de segunda-feira, as opiniões das protagonistas foram dissonantes sobre a sensação de subir ao palco pela primeira vez. Inês Gonçalves diz-nos que foi “bom para si, para receber o feedback automático do público”, mas Joana Miranda mostrou, em rescaldo, uma posição pouco confiante na análise dessa noite: “concentro-me muito na performance e por isso avaliei até ao mais ínfimo detalhe, por exemplo, se digo uma piada e não se riram ou houve momentos em que senti que não tinha assunto”.

Em duas noites, interessantes de formas diferentes, os “filminhos” (nome não-oficial dos ouvintes de A Minha Vida Dava Um Filme) saíram do Hard Club com as expectativas correspondidas numa experiência que tirou as lisboetas do Spotify e as trouxe à cidade do Porto. Mantendo o registo íntimo e sincero, Joana Miranda e Inês Gonçalves transportaram cada espectador para dentro da casa onde, semanalmente, gravam o podcast e deixaram o palco com uma sensação que, com certeza, dificilmente esquecerão.

 

Artigo da autoria de: Tiago Sousa
Fotografias por: Joana Rita Cirne

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