Opinião

A leviandade na confissão de uma violação em direto revela a urgência em classificá-lo crime público

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Era mesmo isto que faltava. Se não houvesse relatos suficientes da desvalorização do crime de violação, um jovem de Viseu confessa uma violação num live do Instagram, entre risos, enquanto espera ser exaltado.

A mórbida conversa aconteceu no dia 23 de fevereiro, num direto iniciado pelo humorista Fábio Alves na rede social, em que aceitava participantes aleatórios e lhes fazia questões. Foi ao questionar Hugo Carvalho sobre a “coisa mais louca” que fez no sexo, que obteve a inesperada confissão. O que se seguiu na conversa foi – e esta é a melhor palavra para o descrever – nojento.

O anfitrião, perplexo, perguntou várias vezes para confirmar “Tu violaste uma gaja?”, “Tu sabes o que é violar uma gaja?”, “Tu obrigaste uma gaja a praticar sexo contigo?”. As respostas foram sempre no sentido de quem sabia bem o que estava a dizer, o que fez e que não mostrava qualquer arrependimento. Pelo contrário, a descontração como o professou revelava uma expectativa de ser admirado pelo crime. Acompanhado por amigos, o crime foi confirmado também por eles “Ele obrigou, sim senhor”. Nenhum dos intervenientes parecia devidamente chocado com a situação e, neste momento, é o mais grave de ver.

Segundo a confissão, a jovem foi deixada para posteriormente ser socorrida pelo INEM. “Deixei-a lá e depois foi o INEM buscá-la” confessou o arguido, que está a ser investigado pelo Ministério Público.

A leviandade com que se confessa um crime de violação, esperando-se ovações, é a prova final necessária para provar a leviandade com que se tem levado este assunto. O cúmulo disto tudo é o arguido ainda pronunciar o nome da vítima, com a plena sensação de impunidade perante o desrespeito que teve – e continua a ter – em relação à vítima. Sentem que podem fazer o que querem e nunca nada lhes vai acontecer. E a culpa é da cultura da violação, para a qual todos contribuímos, se não nos revoltarmos com situações como esta.

A resposta imediata da polícia de que o relatado pode não ter passado de uma “fantasia” é algo que também me custa a acreditar. Espero que a polícia esteja a investigar devidamente o caso, em vez de se prontificar a justificar um possível violador. O facto de a vítima não ter apresentado queixa voluntariamente não significa que o crime não aconteceu. As vítimas têm, frequentemente, muitos motivos para não o fazer. Um dos motivos que creio que conseguimos compreender bem é o medo da retaliação do agressor que já exerceu, pelo menos uma vez no ato da violação, opressão sobre a vítima e pode naturalmente voltar a fazê-lo para evitar ser punido pelo crime. Outro motivo, infelizmente recorrente, é evitar o julgamento social que tende a procurar formas de atribuir a culpa à vítima.

Mas o crime de violação não se reduz apenas a uma violação em particular. Diz respeito a toda a sociedade. Envolve direitos como a liberdade, autodeterminação sexual e a básica dignidade humana. Não quero pertencer a uma sociedade que permite violações e que prescinde da responsabilidade de as evitar ou de punir devidamente os agressores.

Os violadores sentem a impunidade que se verifica em relação aos seus crimes (como o exemplo do direto) e isso agrava o risco de prosseguirem no mesmo percurso. A violação apresenta grandes tendências compulsivas e taxas de reincidências altas. Dificultar o processo de queixa só tem vindo a agravar a situação.

E por estas razões, violação deve ser crime público.

Crime público é um crime que, devido à sua natureza, obriga a polícia a denunciar delitos de que tenham conhecimento no seu exercício de funções, bem como pode ser denunciado por qualquer pessoa e cujo processo ocorre mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos. Neste momento, apenas as vítimas podem apresentar queixa do crime. O mesmo acontecia com a violência doméstica que, felizmente, alterou a sua classificação, há vinte anos, para crime público. Não faz sentido não se fazer o mesmo para o crime de violação.

Se a vítima fala, não acreditam ou procuram formas de a culpabilizar. Se alguém assiste, não pode ser testemunha. E, se o violador o confessa em direto, pode ter fantasiado. Tornem a violação crime público já.

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