Artigo de Opinião

Comentador da República Portuguesa

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Imagem: Element5 Digital (Unsplash)

Quando eu era pequena, lembrava-me de um Marcelo Rebelo de Sousa comentador da TVI. Nada percebia eu de política, mas os meus avós, com quem eu passava muito tempo, costumavam ouvir religiosamente o comentário semanal.

Não percebia de que falava, nem porque é que alguém preferia ouvi-lo, ao invés de ver os desenhos animados do Disney Channel. Apenas me lembro dos meus avós se referirem ao atual presidente da república como “o Martelo”. Achava muita piada a este pequeno detalhe, e via-me a pensar que, um dia, queria também ser crescida e dar alcunhas engraçadas e fundamentadas a pessoas que aparecem na televisão.

Hoje, já um pouco mais crescida, deparo-me diariamente com este tal nome que marcou os fins de semana da minha infância. “Marcelo Rebelo de Sousa comenta decote de mulher”, “Marcelo Rebelo de Sousa comenta ataque com tinta a Medina”. “Não deviam ter começado”, diz Marcelo ao chefe da missão diplomática da Palestina. Passados alguns anos, percebo que o atual presidente da república continua, essencialmente, com a mesma função, comentar. Para além disso, percebe-se que Marcelo desenvolveu, ao longo destes anos de mandato, a mais impecável omnipresença, desde congressos até festas da aldeia que ofereçam bebida à discrição e provas de enchidos. Um copinho aqui, um salgadinho ali, Marcelo, enquanto petisca, vai deixando os seus pareceres relativamente ao que se tem passado. Esta postura descontraída nem sempre é uma receita de sucesso, principalmente quando estão em causa questões mais complexas do que um mero parecer acompanhado de migalhas remanescentes de um pão com queijo da serra e presunto.

A demissão do primeiro-ministro, António Costa, foi a oportunidade perfeita para Marcelo mostrar a sua verdadeira costela de chefia e liderança. Porém, o presidente tomou a posição de dissolver a Assembleia, um verdadeiro tiro no pé da estabilidade política que tanto é prezada, um desperdício de maioria absoluta. Creio que Marcelo se quis, acima de tudo, salvaguardar, e remar contra uma maré que Jorge Sampaio navegou em 2004, com a saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia.

As más-línguas murmuravam, naqueles tempos longínquos, que a decisão tomada por Jorge Sampaio serviria apenas de dar tempo ao PS para se preparar para as eleições, uma vez que o sucessor escolhido, Santana Lopes, era ainda muito pouco experiente na liderança política. Passados oito meses desde a tomada de posse, foi dissolvida a assembleia e, curiosamente, o PS viria a ganhar as eleições com uma maioria absoluta chefiada por Sócrates.

Mesmo existindo este boato, creio que Jorge Sampaio mostrou uma vontade proativa de dar oportunidade a tudo o que uma maioria absoluta pode fazer por um país, se transparente e bem chefiada. Voltando a 2023, creio que Marcelo deveria ter tomado esta atitude de persistência, e ter optado por dar ordens concretas para uma reorganização do governo, para limar as arestas de um governo polémico desde o seu primeiro dia.

Convocar eleições apenas enaltece o medo do futuro, do que poderá vir. Poderá, sim, dar tempo ao PSD para se reerguer e se reorganizar face a um Montenegro frágil e mal preparado. Porém, a iminência de uma coligação de direita que inclua o Chega torna-se um cenário cada vez mais plausível, caso contrário seria muito improvável o PSD conseguir um resultado desejado coligando-se apenas com a Iniciativa Liberal. Nem sequer se coloca em causa ressuscitar o CDS-PP, que por este andar, já os vermes subterrâneos devoraram-lhe todo o caquético tecido muscular. Marcelo abriu as portas para um combate que, apesar de assumir várias caras e várias ideologias, tem dois alvos em comum: a abstenção e a ascensão do Chega.

Artigo da autoria de Rita Vila Real

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