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Ciência e Saúde

CONVERSAR SEM BARREIRAS: A AFASIA NÃO É O FIM, É O RECOMEÇO

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A afasia é uma sequela resultante de uma lesão cerebral que ocorre em zonas específicas do cérebro – as que processam a linguagem. Sendo um problema específico da linguagem – capacidade que permite não só a expressão, como também a descodificação e compreensão dos conteúdos –, não afeta a inteligência, os conhecimentos, as memórias, a personalidade ou a capacidade de adequação ao meio. A afasia compromete o processamento de um código – neste caso o da língua portuguesa – que se traduz na dificuldade de leitura, de escrita e expressão verbal.

Cada caso é singular e, por isso, existem diferentes tipos de afasia. Variam de acordo com a lesão, nomeadamente a localização e extensão, assim como com a idade e o tempo de estimulação a que se for sujeito logo após a lesão. Existem casos de sucesso através do recurso a terapias específicas, nomeadamente terapia da fala, mas apenas em casos em que a lesão esteja localizada e a área de incidência seja muito reduzida. Existem também, apesar de raros, casos de recuperação espontânea, graças à capacidade de regeneração do cérebro. Contudo, na grande maioria dos casos, a lesão torna-se crónica e afeta as pessoas para o resto da vida – com a possibilidade de recuperar algumas competências através de terapias.

Apesar de, em Portugal, não existirem estudos concretos sobre a afasia, existem algumas referências estatísticas que permitem aos profissionais de saúde estarem a par das causas, da prevalência e incidência da lesão. Aponta-se que a principal causa seja a consequência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Mas também pode ser originada  por traumatismos crânio-encefálicos, tumores que afetam a área específica do cérebro ou até algumas demências que começam por manifestar-se como afasia.

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Infografia: Ana Rita Costa

Ao nível nacional público, estima-se que sejam entre três a cinco os centros de reabilitação com terapias para pessoas com afasia. No entanto, e apesar de já serem abordadas questões relacionadas com a funcionalidade diária das pessoas, a intervenção é sobretudo médico-clínica. Existem ainda critérios que condicionam o acesso das pessoas aos centros e a maioria dos pacientes acaba por ficar de fora.

As pessoas são encaminhadas para clínicas de fisiatria que têm comparticipações com o estado ou para unidades de cuidados continuados, que têm terapias focadas na doença e não no aumento da autonomia e qualidade de vida da pessoa. Mas já existe uma alternativa em Portugal, que visa a inclusão social e o aumento da acessibilidade comunicativa destas pessoas.

O Instituto Português de Afasia

O Instituto Português de Afasia (IPA) visa ajudar as pessoas com afasia a refazer os planos de vida e a ganharem competências para avançar com a mesma. O trabalho da associação rompe com as terapias tradicionais – que procuram reabilitar os defeitos linguísticos destas pessoas – e ajuda-as a aceitarem a nova realidade, dando-lhes ferramentas para que não deixem de alcançar os objetivos de vida que tinham antes da lesão.

O JUP esteve à conversa com a diretora e fundadora desta instituição – Paula Valente, terapeuta da fala – que explicou a necessidade de criar o projeto e os valores e o papel do mesmo na sociedade.

“Eu sempre quis trabalhar com estas pessoas, foi uma questão de vocação. Quando estagiei com esta população, percebi que era isto que eu queria fazer – que queria trabalhar e estudar estas questões. Mas quando entrei no mercado de trabalho, fiquei muito frustrada com as consultas de vinte minutos – no máximo de meia hora – que não me permitiam ajudar estas pessoas. Havia pessoas a ter alta, não por minha vontade, mas por ordens superiores, e eu sabia que aquelas pessoas não iam sentir melhorias na sua vida. Por isso, decidi despedir-me e, acima de tudo, decidi ser coerente com os meus valores e dediquei-me inteiramente a este projeto.”

O IPA lida com pessoas acima dos 18 anos e tem-nas como eixo central. Mais importante do que a afasia é a relação que se estabelece entre as pessoas. A sociedade é outro eixo crucial que a associação procura trabalhar.

“Não adianta tentar capacitar a pessoa com afasia e os seus familiares, se depois estes chegam aos contextos sociais e não encontram facilidade em aceder aos serviços. Já existe a consciência em Portugal, assim como legislação, que obriga os edifícios a terem condições de acesso a pessoas com mobilidade reduzida. Em relação às pessoas que têm alguma dificuldade ao nível da comunicação, isto ainda não existe. Estas podem até ter instrumentos de ajuda como tablets, no entanto no quotidiano, todos esperam que utilizemos só a fala para comunicar – seja para ir ao café, à farmácia ou até mesmo ao balcão da inclusão da Segurança Social. Portugal não está preparado para lidar com estas pessoas.”

Segundo a especialista, o problema começa desde o momento em que estas pessoas sofrem a lesão e vão parar a uma cama de hospital. Não em todos os casos – garante –, mas a maioria dos centros hospitalares em Portugal não transmite informação necessária às pessoas, sobre a doença e possíveis prognósticos.

“Eu acredito que haja a passagem de informação por parte dos profissionais de saúde, contudo não é acessível para que as pessoas percebam o que que lhes está a acontecer.” – conta a diretora do instituto.

Técnicos envolvidos no projeto

Atualmente, o IPA conta com a colaboração de duas técnicas da área da saúde – uma terapeuta da fala, além da diretora da instituição, e uma psicóloga. Concentram-se ambas na reabilitação da dos doentes e tentam mostrar aos associados da instituição que existem outras formas de comunicação, para além da fala. Abordam também as emoções associadas a uma possível paragem que tenha ocorrido nas suas vidas. Mas as profissionais reconhecem que se trata de uma troca mútua de conhecimentos e ensinamentos.

“Podemos fornecer estratégias e recursos que facilitem a adaptação das pessoas com afasia e seus cuidadores às exigências despoletadas por esta condição clínica, no entanto, continuam a ser eles os principais promotores da mudança, pois são eles que enfrentam dificuldades diárias na comunicação, e, por isso, são eles que nos ensinam diariamente o quão focados estamos na fala e não na comunicação“, afirma Nicole Gonçalves, atual psicóloga do IPA.

A afasia não se revela uma dificuldade exclusiva de linguagem e tem associada a si uma componente de alteração emocional, que em momento algum deve ser ignorada. O papel de um psicólogo no processo é muito importante. A recuperação e a melhoria das competências linguísticas das pessoas dependem da motivação, e a motivação está associada ao bem-estar psicológico – a falta de acompanhamento psicológico pode revelar-se um dos maiores entraves à aceitação e reabilitação.

“A perda da fala como meio privilegiado de comunicação pode levar a pessoa a vivenciar um processo de luto, e de consequente readaptação e reajustamento ao seu novo “eu”. Neste sentido, muitos doentes podem experienciar diversas alterações emocionais, tais como: sintomas depressivos, medo, apatia, sintomatologia ansiosa, irritabilidade, frustração, alterações ao nível da imagem corporal, perda de autoestima, entre outras consequências. Todas estas consequências têm um impacto preponderante na qualidade de vida das pessoas com afasia bem como na vida dos seus significativos. Neste sentido, podemos dizer que existem problemas e dificuldades que são comuns e transversais a todas as pessoas que enfrentam este desafio, mas também devemos ter presente que cada caso é um caso, e, como tal, a intervenção psicológica é sempre focada nas idiossincrasias de cada vivência,“, conclui a psicóloga do instituto.

No que diz respeito ao trabalho, Nicole acredita que é preciso pensar em alternativas e ver cada pessoa como alguém único, com diferentes características.

“É importante que estejamos preparados para “pensar e agir fora da caixa”, ou seja, não ir para uma consulta com a sessão totalmente programa, devemos deixar sempre uma margem para a alteração em função das necessidades encontradas naquele dia. A utilização de outros meios de comunicação para além da fala acabam por ser fundamentais junto das pessoas com afasia, dado que, em Psicologia, trabalhamos com as emoções, sentimentos e comportamentos das pessoas, isto é, a matéria prima são as pessoas. Portanto, a intervenção psicológica acaba por ser uma tarefa que exige comunicar, mas não obriga a que a mensagem seja falada. Por tudo isto, considero que trabalhar com estas pessoas representa um desafio no sentido em que nos transforma diariamente em profissionais mais competentes e mais ágeis.”

Mónica Barroso, o testemunho

Sorridente, bem-disposta e pronta para conversar. Era assim que Mónica Barroso se encontrava quando o JUP visitou o IPA para entrevistá-la. Com 49 anos de vida, há nove que tem uma nova companhia – a afasia – e há apenas um que a vida de Mónica ganhou um novo rumo, ao descobrir o IPA.

Mónica era professora na Universidade do Porto, mas um AVC impediu-a de continuar a dar aulas. Para conseguir recuperar a qualidade de vida frequentou a terapia da fala durante dois anos, bem como fisioterapia, no entanto não conseguia ver melhorias ao nível da comunicação, sendo esta falha o maior entrave no dia-a-dia. Ainda que lhe tivessem dito num primeiro diagnóstico que a afasia impossibilitava as pessoas de falar, Mónica acreditou que conseguia ir mais além. E foi. Descobriu o IPA através do Facebook e conduziu em direção ao Porto, com partida de Viana do Castelo, à procura de um apoio que não tinha tido até então – o apoio de profissionais de terapia da fala, de uma psicóloga, voluntários, e de um grupo de outras pessoas que vivem com afasia, dispostos lutar e ajudá-la a derrubar todas as barreiras que possam existir.

Já sabia o que era a afasia antes de a começar a tratar por “tu”, no entanto não tinha consciência das dificuldades que esta poderia trazer nas relações interpessoais. Partilhou histórias na primeira pessoa e confessou que não sentiu compreensão por parte de algumas pessoas com quem se foi cruzando ao longo destes 9 anos:

“Eu queria comprar uns bilhetes para a minha filha, para ir ao teatro. Estava sozinha e não conseguia falar, e a senhora achou que eu era maluca. Eu chorei e pedi para falar com o responsável. Eu estava a pensar no que queria falar, não é fácil, mas eu ia conseguir, e a senhora ajudou zero. Eu já falei com muita gente  que me ajuda, seja no shopping ou no supermercado. Mas muita gente não sabe nada e fica a pensar que eu não consigo falar, sem saber como reagir.”, desabafa.

Além de Mónica, 18 pessoas são acompanhadas pelo Instituto Português de Afasia, juntamente com os familiares. Nas palavras de Mónica fica clara a gratidão e satisfação por fazer parte do projeto:

“Eu sinto-me muito melhor. Há mais ou menos um ano eu sabia falar exatamente como hoje. É pouco. Mas eu tinha uma atitude diferente. Hoje sinto-me com outra atitude. Não é fácil falar, mas eu quero saber, quero conversar.”

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Paula Valente, Mónica Barroso e Helena Marques. Foto: Carolina Franco

A importância do apoio familiar

A motivação pessoal é importante e fundamental para a cura da afasia. Mas a ajuda de todos aqueles que estão à volta dos doentes também tem um papel fulcral na evolução, em especial a família. Paciência e compreensão são as palavras de ordem. É importante que os familiares estejam em sintonia com a pessoa com afasia e que tenham para elas uma perspetiva de futuro positiva. Uma das tarefas iniciais e mais importantes do IPA para com a família é dar a informação de que precisa, para saberem o que se está a passar com o familiar doente, e entender como está a percecionar tudo. Paula Valente acredita que o apoio dos familiares tem repercussões muito positivas e que é notória a sensação de autonomia que vai sendo ganha, quando a família sabe lidar com a afasia e não a vê como um entrave.

No Instituto Português de Afasia é feito um acompanhamento à família para desmistificar a doença, para alertar consciências e ainda para dar apoio emocional àqueles cujas vidas também acabam por ficar desestruturadas. A diretora do IPA conta que, quando chegam até si, as pessoas deixaram de viver as suas vidas para acompanhar o doente que têm em casa, o que acaba por ser fruto da importância dada aos laços familiares pelos portugueses, mas que a longo prazo pode funcionar como entrave à autonomia dos afásicos:

“Nós vivemos num país que ainda é muito paternalista e por vezes o “recomeçar a fazer as minhas coisas” é visto como egoísmo, e as pessoas pensam que não conseguem, que não podem, que é impossível ficarem tranquilas ao ver o familiar a ir sozinho à consulta do médico… e é difícil trabalhar isto, esta mentalidade que está tão intrínseca nestas nossas relações familiares que são muito fortes.”

A presença de uma psicóloga na equipa transparece a necessidade de os associados e respetivos familiares falarem sobre os seus sentimentos e emoções, cuja dificuldade de comunicação acaba inevitavelmente por abalar. Nicole acredita que os “cuidadores informais”, como apelida os familiares têm um papel importante, mas não se podem esquecer de cuidar de si antes de cuidar dos outros:

“Ser cuidador é uma tarefa exigente que, muitas das vezes, desencadeia uma sobrecarga física e emocional difícil de ultrapassar. As exigências diárias do ato de cuidar, podem originar sintomas de ansiedade e depressão, que têm um impacto preponderante na qualidade de vida e bem-estar de todos aqueles que convivem diariamente com as pessoas com afasia. Estes sintomas estão, muitas vezes, associados ao facto de haver uma diminuição gradual do contacto social, pois as exigências familiares tornam-se maiores, os contextos sociais são substituídos por unidades hospitalares, centros de reabilitação, entre outros.  Daí que a mensagem mais importante a passar aos cuidadores é que, antes de cuidar dos outros, temos que cuidar de nós mesmos, portanto, acaba por ser imperativo explicar que devem ter tempo para si e que esse tempo vai facilitar este processo, dado que, muitas vezes, os cuidadores sentem-se culpados por despender tempo para assegurar o seu auto-cuidado.”

A maioria das pessoas vem para o IPA por incentivo da família, que tem um papel muito importante na decisão. No entanto, é com a ajuda dos profissionais de saúde para com os familiares, e dos familiares para com os doentes, que despertam alguns dos sinais de um recomeço. Começam a fazer coisas de forma autónoma – até a ir sozinhos para o IPA – e a auto-estima aumenta de modo substancial. O bem-estar tem um peso muito grande. É importante sentirem que estão novamente com “as rédeas” da sua vida na mão.

Sensibilizar os outros é uma aposta no futuro

Além de dar apoio aos familiares, o Instituto Português de Afasia acredita que é importante sensibilizar a população e os que desconhecem a afasia, promovendo Palestras para a Comunidade. Por muito que o trabalho com os afásicos possa estar a correr bem, é importante que encontrem uma sociedade preparada para saber lidar com os doentes e respetivas limitações.

A diretora do IPA acredita que ainda há muito a fazer e o objetivo com as Palestras para a Comunidade passa por alertar não só os que trabalham em espaços de saúde, que lidam obrigatoriamente com os afásicos, mas também membros de outras instituições – as que qualquer pessoa tem de frequentar no dia-a-dia, como as finanças, os correios ou até o apoio ao cliente da Câmara Municipal.

É urgente capacitar não só as instituições mas também os cidadãos, para que consigam ter a preocupação de tornar a comunicação acessível a todos – seja através dos menus dos restaurantes, das indicações escritas dos supermercados, ou de uma simples conversa. Mónica Barroso deixa o apelo.

“Eu já falei com muita gente  que me ajuda, seja no shopping ou no supermercado. Mas muita gente não sabe nada e fica a pensar que eu não consigo falar, sem saber como reagir. Eu acho bom saber mais sobre a afasia, porque muita gente não sabe nada

Também Paula Valente, Nicole Gonçalves e Helena Marques deixam uma mensagem. É importante refletir sobre as ações que tomamos diariamente, que consigamos dar tempo àqueles que têm dificuldades de fala, que nos mantenhamos informados sobre o que é afasia. No fundo, que percebamos que a afasia é o recomeço, não o fim.