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Ciência e Saúde

TECNOLOGIA: COMO O USO COMPULSIVO PODE SER UMA CAIXA DE PANDORA

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Uso compulsivo de tecnologia
Fonte: PIxabay

Fonte: Pixabay

Em outubro deste ano, noticiou-se por todo o mundo o primeiro caso de um indivíduo que está a ser tratado, na Índia, por vício em Netflix. São vários os trabalhos científicos que estudaram os hábitos e as consequências da utilização compulsiva da tecnologia.

De acordo com o médico Manoj Kumar do NIMHANS (Instituto Nacional de Doença Mental e Neurociências) na Índia, em entrevista para o ABCNews, o homem de 26 anos de idade assistia a conteúdos da plataforma durante mais de seis horas diárias. A Clínica com Serviço para o Uso Saudável da Tecnologia, parte do NIMHANS, é procurada maioritariamente por pessoas para tratamento do vício em videojogos, mas os médicos estão a verificar que podem existir casos por descobrir relacionados com a transmissão de séries e filmes online. Este ano, a Netflix conta com mais de 130 milhões de subscritores e, em 2017, a plataforma anunciou que os seus utilizadores teriam visualizado filmes ou séries durante mais de 140 milhões de horas por dia.

Os smartphones, computadores e tablets trouxeram com eles um mundo novo e uma constante ligação a informação, entretenimento e a outras pessoas. É possível verificar a meteorologia, fazer transações, estar em contacto com amigos do outro lado do mundo ou ler notícias, tudo sem sair do sofá. Mas terão estes dispositivos começado já a moldar a forma como vemos as relações interpessoais e o resto do mundo? Um estudo de 2017 testou a hipótese de “brain drain”, e verificou que a mera presença do smartphone tem o potencial de ocupar uma grande parte da capacidade cognitiva, deixando pouco espaço para outras tarefas e limitando a performance e a produtividade do indivíduo.

A plataforma Dscout realizou um estudo em que comparou os hábitos de 94 pessoas e concluiu que um utilizador normal interage (clica, desliza ou escreve) com o telemóvel 2 617 vezes por dia, em média, enquanto um utilizador compulsivo interage com o seu dispositivo móvel quase o dobro, 5 427 vezes.

Perfis de utilização de telemóvel em utilizador médio e utilizador compulsivo [Fonte: Dscout]

Perfis de utilização de telemóvel num utilizador médio (Elizabeth B.) e num utilizador compulsivo (Lori L.), ao longo de 24 horas. [Fonte: Dscout]

Por cá, de acordo com o estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais“, o Instagram é a rede social que mais cresceu este ano e o smartphone é o meio de acesso mais amplamente utilizado para aceder às redes sociais. Em 2016, Esperança Afonso, responsável pelo estudo, em entrevista para a Lusa, referiu que “entre 2008 e 2015, o número de utilizadores de redes sociais em Portugal cresceu de 17,1% para 54,8%”. O Facebook é a rede social mais utilizada (por 93,6% dos portugueses) e 76% dos inquiridos refere que publica fotos ou imagens nas diversas redes sociais. De acordo com o estudo, em média, cada indivíduo está online aproximadamente 81 minutos por dia (dados de 2016), mas as mulheres passam mais tempo nas redes sociais do que os homens. Já os jovens (entre os 15 e os 24 anos), passam mais de duas horas diárias nas redes sociais. O estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais” é realizado anualmente pela Marktest Consulting, desde 2011, para analisar tendências de utilização e opinião, bem como os hábitos da população portuguesa face às redes sociais.

Na Austrália, é reportado que cada pessoa pode chegar a verificar o seu telemóvel a cada 12 minutos durante o dia. Liliana Laranjo, investigadora na Universidade Australiana de Macquarie, contou ao The Sidney Morning Herald que, embora “muitos investigadores não vejam perigo na tecnologia, vêm o vício na mesma como um sintoma de outros problemas, como depressão, ansiedade ou défice de atenção”.

“[embora] muitos investigadores não vejam perigo na tecnologia, vêm o vício na mesma como um sintoma de outros problemas, como depressão, ansiedade ou défice de atenção”, contou Liliana Laranjo.

De facto, é provável que uma das causas de vício nas redes sociais esteja intrinsecamente ligada à necessidade de validação (ou comportamento “baseado na recompensa”) de cada indivíduo. Bob Patton, professor na Universidade de Surrey no Reino Unido, considera que o quanto cada individuo é afetado pelo conceito de gostar ou “ser gostado” varia. Por sua vez, Daria Kuss, psicóloga na Universidade de Nottingham Trent, explicou ao Telegraph que os “gostos” nas redes sociais criam ciclos viciosos, pois o utilizador acredita que quanto mais tempo passar online e quanto mais conteúdo publicar, mais aprovação de outros utilizadores recebe.

Alguns estudos indicam também que grande parte do uso compulsivo de tecnologia pode ser desencadeada por certos elementos externos ao utilizador e que, assim, é não intencional. Contudo, estes elementos podem estar a ser construídos por programadores de forma a não serem percetíveis. O Facebook criou o “Gosto” em 2009 com esse propósito e o mesmo é transversal às várias redes sociais. A cor vermelha, como explica Tristan Harris ao The Guardian, é usada em notificações de forma a incitar o utilizador a abrir as aplicações e o mecanismo de “puxar-para-atualizar” (do inglês, pull-to-refresh) partilha algumas semelhanças com uma máquina de casino. “Cada vez que deslizas é como uma slot machine, não sabes o que vai aparecer a seguir, pode ser uma fotografia ou só um anúncio”, contou Harris, antigo trabalhador da Google que atualmente se tornou numa voz forte e crítica acerca da indústria tecnológica.

“Cada vez que deslizas é como uma slot machine, não sabes o que vai aparecer a seguir, pode ser uma fotografia ou só um anúncio”, contou Tristan Harris ao The Guardian.

Hilarie Cash, uma psicoterapêuta no reSTART, um centro americano de reabilitação de adultos e jovens viciados em Internet, afirma que os peritos acreditam que 1% a 13% da população americana tenha algum nível de vício em Internet. Cash lamenta também o quão desprezada é habitualmente esta síndrome, garantindo que “o vício do jogo foi apenas verdadeiramente reconhecido nos manuais de especialidade como um vício comportamental recentemente”, mas o impacto no cérebro é incrivelmente similar a vícios com opióides.

“A maneira como o cérebro de um jogador se ilumina em euforia (…) é similar ao que se verifica num viciado em cocaína”, contou Hilarie Cash.

Os jogos são também um dos problemas associados ao vício em tecnologia, em que os jovens são um grupo de risco. Este ano, a Organização Mundial de Saúde classificou o vício em jogos como um distúrbio mental, na 11ª Edição do International Classification of Diseases. Dado o reforço positivo e a satisfação que os jogos trazem às crianças, as quais não têm ainda a autonomia e maturidade para se autodisciplinarem, está nas mãos dos pais controlar o tempo que elas passam online. Até porque este distúrbio não tem apenas efeitos na saúde mental, mas também na física, pois pode estar associada a atividade física insuficiente, regime alimentar deficiente ou problemas de visão e audição.

Fortnite é dos jogos recentes que surgiu como um problema grave para muitas crianças, assim como para alguns adultos. O jogo online, de acordo com o seu criador, a Epic Games, já conta com mais de 125 milhões de jogadores desde que foi lançado. É atualmente o jogo mais popular do mundo, no entanto, tem aparecido como tópico em grupos de apoio no Facebook para pais que não sabem como lidar com ávidos jogadores: os próprios filhos, que podem chegar a abster-se de dormir, comer ou estudar para jogar.

Eytan Alexander, fundador do UK Addiction Treatment, no Reino Unido, em entrevista ao ABCnews, refere que um dos problemas é que o “vício mimica a saúde mental e a saúde mental mimica o vício” e distúrbios compulsivos podem estar por detrás de certos vícios. Num artigo publicado na revista científica Psychology of Popular Media Culture, investigadores da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, referem que a ansiedade também poderá estar associada ao vício, embora seja necessária mais investigação sobre este tema. É importante, segundo Douglas Gentile (investigador da Universidade de Iowa), perceber que, para a maioria, jogar é uma forma normal e saudável de lidar com o stress, mas a perda de controlo e a disrupção dos comportamentos habituais é a porta para um vício.

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