Artigo de Opinião
Em tempos de pandemia, uma carta à Natureza
O desconfinamento só começou esta semana para mim. Finalmente deixei de estar presa a quatro paredes e limitada a uma ida semanal ao supermercado e, assim, descobri um novo mundo que não ficou em suspenso, ao contrário das nossas vidas.
Quando os meus pés voltaram a percorrer esse caminho que outrora conheceram tão bem, apercebi-me rapidamente que a minha antiga cidade de betão fora reconquistada pelo selvagem, por ti. O verde rasgou o cinzento ao longo dos passeios e, sem ninguém para cortar as tuas raízes, as plantas ergueram-se mais alto que muitos de nós, meros humanos. O cantar dos pássaros ainda se faz ouvir acima do ruído dos automóveis que já circulam. Desconfio que, se não tivesse de andar de máscara, também o ar seria mais agradável de respirar que o habitual.
Há quem tenha notado que o ar ficou mais limpo durante a quarentena, devido à redução da queima de combustíveis fosseis que alimenta a nossa economia e mobilidade. Uma mudança que será decerto de pouca duração, agora que, gradualmente, cada um retoma a uma nova rotina. Tal como esse retrocesso, também prevejo que os caminhos sejam limpos e os jardins aparados durante as próximas semanas. E, assim, o Homem irá retomar a sua normal posição de imperador perante tudo o que o rodeia e tudo ficará outra vez limpo e organizado, civilizado. Exatamente como era antes desta pandemia e como o Homem sempre deseja. Mas será que queremos mesmo voltar a exercer esse enorme poder que temos tido sobre ti?
Se ainda houvesse dúvida, ficou provado durante esta quarentena a tua maravilhosa capacidade de renascer, de encontrar um novo equilíbrio após todos os desequilíbrios diários a que foste exposta durante décadas. Nem tudo se regenera à mesma velocidade, e talvez algumas mudanças, criadas por nós, tenham sido demasiado severas, como é o caso das alterações climáticas. Alguns golpes são mais difíceis de cicatrizar.
Muitos desenvolvimentos científicos e tecnológicos foram atingidos deste o início da industrialização no século XVIII. Então porque continuamos a usar algumas tecnologias tão obsoletas e porque tantas vezes colocamos a economia e o progresso à frente de todo o resto? Talvez sejamos uma espécie demasiado inconformista e ambiciosa, quando já temos tanto para nos satisfazer. Poderíamos, ao invés de procurar mais para nós, procurar dividir de forma equilibrada as nossas regalias com os que ainda têm tão pouco em comparação. Merecias mais por parte de nós, humanos, esses seres errantes e imperfeitos que te deixam doente.
Gostava que a minha espécie finalmente aprendesse esta lição em 2020: que o nosso atual estilo de vida não é sustentável e que, mais que destruir o planeta, estamos lentamente a destruir tudo aquilo que criamos, mas sobretudo aquilo que nos foi dado por ti. E que deveria ser oferecido a todas as próximas gerações, para a tua beleza indomada ainda poder ser apreciada e para protegermos a saúde de todos nós. Imagino o que seria se usássemos esta crise como uma oportunidade para reconstruir a nossa economia e sociedade suportadas em sistemas e tecnologias mais “limpas” e eficientes e, sempre que possível, assentes na redução e recuperação de materiais e energia.
Na incerteza de como serão os próximos tempos, saboreio tardiamente a primavera e procuro as diferenças por ti criadas, no percurso diário que faço entre a faculdade e a minha casa. Há poucos recantos intocados pelo Homem, por isso desfrutemos deste pequeno presente, enquanto não o perdemos novamente. Obrigada por este “silver lining” que proporcionaste, a quem dele pôde usufruir.
Artigo elaborado por Mariana Miranda.