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Ciência e Saúde

O Mestre Além do Seu Tempo

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Em 2023, a química portuguesa celebra o 100.º aniversário da morte de António Ferreira da Silva.

Ferreira da Silva personificou a evolução científica portuguesa em direção à química moderna no século XX. A ciência foi fundamental na formação do homem, que se revelou um perito inovador na emergência da química analítica, pioneiro na regulação alimentar, e como a “sua” química resolveu importantes diferendos comerciais e forenses.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e3/Dr._Ferreira_da_Silva.jpg

António Ferreira da Silva (1853-1923)

Licenciado em “Filosofia Natural” pela Universidade de Coimbra (1871-1872), doutorou-se em Ciências Físico-Químicas e Farmácia pela recém-criada Universidade do Porto em 1918 e 1922. Iniciou a sua carreira académica como professor na “Secção de Filosofia” da Academia Politécnica do Porto em 1877. Foi subindo na hierarquia até se tornar professor catedrático de várias disciplinas de química, nomeadamente de química orgânica, e supervisionou a criação de uma secção autónoma de química analítica em 1884. O seu legado inclui muitas descobertas químicas durante o final do século XIX, onde desenvolveu novos métodos para a identificação de substâncias, que rapidamente se espalharam pela comunidade internacional. Incluindo o inovador reagente Lafont-Ferreira da Silva para a deteção de alcaloides. Os seus trabalhos foram publicados em vários manuais de química, tendo sido um habitué de conceituadas conferências europeias sobre métodos analíticos e nomenclatura química. Chega mesmo a partilhar o palco com cientistas famosos como Dmitri Mendeleev (1834-1907), ao ser pioneiro na introdução na academia portuguesa da nova Tabela Periódica dos Elementos. Lecionou também na Escola de Farmácia do Porto a cadeira de Química Legal e Sanitária a partir de 1902, ensinando a uma nova geração de farmacêuticos e médicos, a importância da química analítica no diagnóstico clínico e na tomada de decisões com base científica. Com a criação da Universidade do Porto, em 1911, foi seu Vice-Reitor de 1918 a 1921, mantendo as suas funções docentes.

A sua primeira projeção social ocorreu quando, em 1880, foi solicitado pela Câmara Municipal do Porto para supervisionar a avaliação da qualidade da água das fontes de água da cidade. As suas descobertas moldaram a política da cidade em matéria de segurança de água potável, abordando questões de saúde pública, que culminou com a sua nomeação em 1882 para diretor do novo Laboratório Municipal de Química do Porto. Foi um elemento fulcral na modernização do abastecimento de água do Porto, tendo criado outros serviços públicos para a cidade, como a análise gratuita de géneros alimentícios para comércio e consumo.

Com a resolução do badalado “Caso Urbino de Freitas”, Ferreira da Silva sedimentou a sua posição como o “mais influente químico português”. Com os relatórios inovadores da sua equipa de peritos, foram as suas provas científicas que solucionaram um dos crimes mais mediáticos do século XIX. A forma como desconstruiu o argumento de autoridade, centralizando a noção de ciência como o resultado da investigação empírica, inaugurou uma esfera de credibilidade para a química Portuguesa. Tanto que a legitimação do papel da química na sociedade, por meio do impacto desse caso judicial, foi além da consequente condenação do autor do crime. Foi o primeiro caso jurídico Português em que as linguagens científica e jurídica foram adequadamente articuladas, culminando com o uso sistemático de um método para produzir provas científicas, posteriormente consubstanciadas como provas jurídicas. Ao eliminar o viés dos valores da química, mudou para sempre a ciência Portuguesa, legitimando a sistematização laboratorial entre legisladores e leigos, provando que o conhecimento científico nasce de evidências tangíveis e não dos homens.

Por este e muitos outros empreendimentos, há quem o afirme como, porventura, o “mais eminente químico português”. Por isso, nestes 100 anos, é importante relembrar não só o que Ferreira da Silva significa para a química portuguesa, mas também o que a sua obra representa perante os desafios científicos atuais. Ferreira da Silva foi pioneiro ao levantar a preocupação da ciência contemporânea com a dignidade social da química. Ele chamou a atenção para o que o cientista Harvey Wiley previu: a química não deve ser desacreditada pelo seu “aparente afastamento do interesse humano”. Por estar “tão perto das primeiras formas de vida, por estar tão em contacto com os segredos mais profundos”, a dignidade da química deve ser propagada para fora do meio académico. E Ferreira da Silva fê-lo, à frente do seu tempo, deslocado pelo seu ambiente. Elevou o conceito de dignidade de Wiley à esfera social: “a química ao serviço da nação”.

Artigo da autoria de José Caetano

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