Ciência e Saúde
Violência Obstétrica
Num mundo imprevisível e exposto às mais diversas mudanças, onde a luta pelos direitos humanos é uma constante, ainda são praticadas crueldades completamente desnecessárias e evitáveis. A violência obstétrica, um tema cada vez mais presente na ordem do dia, é um exemplo, infelizmente muito comum, que se enquadra neste panorama.
A violência obstétrica é a violência contra as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto. Engloba o desrespeito à mulher, ao seu corpo, à sua vontade e direitos, e manifesta-se essencialmente na forma de abusos físicos, verbais, recusa ou negligência da assistência à grávida, desumanização ou humilhação. Este tipo de violência não diz respeito apenas aos médicos obstetras, mas a todos os profissionais de saúde que interagem com a grávida, sendo, na verdade, um tipo de violência institucional de género.
Infelizmente, apesar de ser algo bastante comum, a violência obstétrica só há pouco tempo é que começou a ser reconhecida, em Portugal. No entanto, em países como a Argentina e a Venezuela, esta prática já é considerada crime desde os anos 2000. Quanto ao cenário europeu, países como a Espanha, França e Itália continuam a debater a inclusão deste tipo de violência na legislação. No que diz respeito ao nosso país, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentou um projeto de lei que visa criminalizar a prática de violência obstétrica e reforçar a proteção das mulheres no contexto da gravidez e do parto.
Neste âmbito foi feito um estudo online realizado pelo Instituto Superior de Saúde Pública da Universidade do Porto, entre março de 2020 e outubro de 2021, publicado pela revista científica “The Lancet Regional Health – Europe”, no final de 2021. O mesmo, endereçado a mulheres que foram mães durante a pandemia, no qual participaram mais de 21 000 mulheres, cerca de 1800 de nacionalidade portuguesa, revela que Portugal continua a ter taxas superiores, quando comparado a outros países europeus, no que toca à realização de procedimentos considerados como violência obstétrica. De entre estas práticas médicas, anteriormente mencionadas, destaca-se o recurso a técnicas não aconselhadas como a episiotomia e a manobra de Kristeller.
A episiotomia consiste numa incisão cirúrgica no períneo (região muscular entre a vagina e o ânus), realizada na segunda fase do trabalho de parto, com o objetivo de alargar o orifício vaginal, de forma a facilitar a expulsão do bebé. Atualmente, a episiotomia não é recomendada como um procedimento de rotina, devendo apenas ser realizada em casos específicos e acompanhada de indicações. Infelizmente, ainda se cai bastante no uso desta prática em situações não necessárias. Tal ato pode trazer complicações para a mulher, como um pós-parto bastante desconfortável, a possibilidade da ocorrência de hemorragias, infeções, dores intensas, prolongamento da incisão através do esfíncter anal e/ ou reabertura da ferida.
No que diz respeito à manobra de Kristeller, segundo a Ordem dos Médicos, “pode descrever-se como a aplicação de pressão com as mãos sobre o fundo uterino, sincronizada com as contrações uterinas, segundo um ângulo de 30 a 40 o em direção à pelve, sendo aplicada manobra equivalente em situações de cesariana”. Esta é uma prática desaconselhada, relatada como violenta e dolorosa, com perigos associados não só à mulher, com a possibilidade de ocorrência de roturas musculares e uterinas, dores intensas e hematomas, fraturas das costelas, entre outras, como também para o próprio bebé, como o risco de paralisia, traumatismos e lesões, etc.
Segundo este estudo online, integrado num estudo europeu que recolheu dados de vários países da OMS, 40,7% das mulheres portuguesas inquiridas relatam ter sido sujeitas a episiotomia durante um parto vaginal espontâneo, enquanto que a média europeia é de 20,1%, ou seja, menos de metade. O estudo afirma também que, em Portugal, em 49,7% dos partos instrumentados, ou seja, com recurso a ventosas, espátulas ou fórceps, as mulheres foram sujeitas à manobra de Kristeller, valor que sobe para 66,7% na região centro do país, sendo que ambos os valores são superiores ao panorama europeu (41%).
Raquel Costa, psicóloga e uma das autoras do estudo afirma, que “uma em cada cinco mulheres reportou que tem a perceção de que foi vítima de abusos físicos, emocionais ou verbais. Isto é um indicador que nos preocupa, porque provavelmente são problemas de comunicação evitáveis, (…)”.
Um outro estudo, realizado pela Associação de Saúde das Mães Negras e Racializadas em Portugal (Samanepor), sobre “experiências de gravidez, parto e pós-parto de mulheres negras e afro descentes em Portugal”, revela que, de entre as 158 mulheres inquiridas, 21,4% das mesmas admitem ter sido vítimas de violência obstétrica relacionada com questões de raça/etnia, condições sociais, idades, entre outros fatores, durante o período de gestação. Além disso, 84,4% afirmam não ter tido a possibilidade de escolher um acompanhante durante o trabalho de parto e cerca de 65,2% não receberam qualquer tipo de explicação quanto aos procedimentos realizados durante o trabalho de parto, nem nenhum pedido de consentimento.
Estes são estudos que refletem a existência de violência obstétrica em Portugal, ainda que a ordem dos médicos não assuma a existência do termo. Estes, assumem, no entanto, a possibilidade da existência de maus-tratos durante o parto. A ordem dos médicos defende que o termo “mau-trato” ou “maus tratos” é mais abrangente e mais adaptável à realidade de países como Portugal; inclui situações de abuso físico ou verbal, falha de prestação de cuidados adequados, negligência, discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher, depois de devidamente esclarecida sobre os benefícios, os malefícios e a justiça distributiva/social das suas decisões.”.
Ainda assim, nem todos os médicos concordam com tal afirmação, como, por exemplo, o doutor Nuno Hipólito, médico residente em Braga e um dos subscritores de um artigo assinado por um conjunto de médicos defensores do termo “violência obstétrica”, no Público. O mesmo afirma ter assistido, por várias vezes, a casos de violência obstétrica, tanto física como verbal, destacando o uso frequente de um comentário, por parte de profissionais de saúde dirigido a mulheres em trabalho de parto, que ouvia várias vezes: “está a gritar, mas não gritou assim quando o fez”.
De facto, o número de relatos de mulheres que afirmam terem sido vítimas de violência obstétrica multiplicou-se nos últimos tempos. Um movimento que começou online, como por exemplo, quando em 2014, na França foi criada uma hastag – #PayeTonUtérus – que recolheu cerca de 7000 testemunhos, em apenas 24 horas, está a incentivar mais mulheres a partilharem as suas histórias. Inês Meneses é um desses exemplos. Vítima de violência obstétrica durante o seu primeiro parto, escreveu um artigo no jornal Público, publicado a 12 de abril de 2021, no qual expôs a sua experiência. A mesma afirma que, não só foi tocada várias vezes pelo médico, como também foi usada como “modelo” perante uma turma de 20 alunos, onde o tal médico fazia o toque vaginal várias vezes para lhes explicar que ainda não havia dilatação. Passaram-se imensas horas, com vários toques repetidos, sem qualquer explicação dada a Inês, até que a mesma ficou com febre. Foi então submetida a uma cesariana, não tendo levado epidural, embora tenha sido esse o seu pedido. Para além disso, o toque vaginal a que foi sujeita originou uma infeção chamada amnionite, nela e na filha, o que a impossibilitou de estar com a recém-nascida durante os seus dez primeiros dias de vida. Como o caso de Inês, há muitos outros que ocorreram, ocorrem e infelizmente continuarão a ocorrer caso não sejam tomadas ações para combater a violência.
Mas então, o que deverá ser feito para travar este tipo de violência tão cruel? Passará pela redução das intervenções obstétricas? Depende muito do ponto de vista de cada um, mas a resposta não passará, por certo, na redução deste tipo de intervenção, até por que em vários casos são, de facto, necessárias. No fundo, o que realmente é essencial, é não só a garantia de oferta de intervenções obstétricas de qualidade, respeitadoras dos direitos humanos, centrados na mulher e na sua família e não nos profissionais de saúde, como também a oferta de um plano de acompanhamento dirigido à grávida e família, com todos os cuidados e esclarecimentos necessários. Assim, e sabendo que a união faz a força, têm sido criadas iniciativas/petições, a nível mundial e nacional, que visam angariar o maior número possível de assinaturas para que medidas sejam tomadas contra a violência obstétrica. Destas, destaca-se a Associação Gravidez e Parto.
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Artigo redigido por Beatriz Novais Ferreira. Revisto por Joana Silva.