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Cultura

CLARKE, O MAESTRO ENDIABRADO

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Pouco passava das 21h e já rodeavam o Mercado Ferreira Borges resquícios da nuvem negra que, em breve, se formaria na sala dois do Hard Club. Meia hora depois, num palco preenchido por tons azulados, surgia a dinamarquesa Amalie Brunn, cabecilha do projeto Myrkur, acompanhada pelos três membros da banda. O silêncio rompeu-se com a brandura do piano que, em segundos, confrontar-se-ia com os riffs agressivos e as batidas descontroladas, comandados por homens de cara suja de cinzento. Ao fim de um par de músicas, a sala já se encontrava bem acomodada e a polaridade dos vocais de Amalie exibiu-se em todo o seu esplendor: ora celestiais, transcendentais, ora guturais e impulsivos.

Em destaque esteve o seu primeiro-longa duração, M, lançado na segunda metade do ano passado, um álbum feito de faixas com estruturas instrumentais muito semelhantes entre si, mas que deixa a bela e ecoante voz da dinamarquesa sobressair. Em palco, com “Hævnen” e tantas outras, presenciou-se a batalha entre a delicadeza e a impetuosidade, enquanto a condução musical transportava elementos que remetiam à musicalidade medieval e à tensão entre a luz e as trevas. A sua atuação de aproximadamente quarenta minutos culminou num momento de frágil intimidade quando, sozinha em palco, interpretou uma cover de “Song To Hall Up High”, de Bathory.

A pausa entre concertos foi curta. Em poucos momentos, McCoy surge em cena para fazer o soundcheck e pouco passava das 22h30 quando, acompanhado por fortes aplausos, o furação George Clarke assaltou o palco. Quase sem introdução, irrompem a bateria e os primeiros acordes da faixa de abertura do novo álbum, “Brought to Water”, e os vocais de Clarke, tão fiéis à gravação, rasgam por entre a densa muralha de som do baixo e das guitarras.

A descrição e a simplicidade dos cinco elementos de Deafheaven, que em tudo contrariam o estereótipo da banda de black metal, contrastam com a complexidade sonora, com as implosões agressivas e eletrizantes que precedem os dedilhados melódicos e atmosféricos próprios do post-rock de bandas como Explosions In The Sky.

Antes de prosseguirem com o alinhamento que se cingiu à interpretação na íntegra de “New Bermuda”, Clarke tece elogios à cidade portuense e confessa o quão bom é voltar, após tanto tempo, deixando a janela aberta para um próximo regresso. Ao imergir novamente no obscuro e violento mar sonoro, fita o público furiosamente, desafia-o a subir o palco, move-se incansavelmente e gesticula como um maestro endiabrado, pedindo mais dos crescendos e reafirmando a passada rítmica. É a sua presença, tão oposta à tranquila postura de McCoy e dos restantes elementos, que prende o olhar do público e que incentiva os murros no ar o headbanging massivo.

Ainda antes do fim da interpretação na íntegra do novo LP, o “maestro” pede aplausos para Myrkur, que os tem vindo a acompanhar na tour. Já com a camisa negra encharcada colada às suas costas, agarra “Gifts for The Earth” e, perto do fim da música, cada elemento abandona o palco à vez, num diminuendo instrumental delicioso, que deixa os dois guitarristas frente a frente.

Apesar de o palco ter ficado só por momentos, ninguém duvidou do encore. E em segundos, George está de volta a oferecer água à fila da frente, a anunciar que no dia seguinte a banda teria um day off e a colocar qualquer um à vontade para conviver com os artistas. Como um último desafio à audiência, que apesar de absorta pelo concerto mostrara-se pouco intempestiva, afirma: “If you wanna get up here, get up.” E não foi preciso mais do que isso. Após a entrada de “Sunbather”, forma-se o primeiro moche da noite e diversas pessoas sobem ao palco para logo mergulhar no mar de gente hipnotizada com o desempenho de Clarke. Após a exaustiva interpretação, anuncia “And this is it” e “Dream House”, a última música da noite, dá um choque elétrico à audiência.

E numa sala em que o tempo pareceu não conseguir entrar, findou-se um concerto consistente, intenso e arrebatador, em que houve espaço para a insanidade e para a introspeção, para a violência viciante e para a ressaca melódica e contemplativa.