Cultura
NO DIA DO LIVRO, HÁ OBRAS SEM PALAVRAS
Quem todos os dias sobe apressado a rua das Carmelitas no Porto sabe que tem uma prova de obstáculos com muitos “desculpe!”, “I’m sorry”, “pérdon” pela frente (e outros tantos murmúrios mais abafados que ainda bem que não se entendem). O barulho dos flashs, os mapas que se dobram e se desdobram, as mochilas e as máquinas fotográficas alinham-se em fila para visitar “uma das livrarias mais emblemáticas do mundo”. A frase é de José Manuel Lello, mas o título já foi dado à Livraria Lello por várias publicações mundiais.
Para os mais distraídos e para quem anda a descobrir a cidade de mapa ou GPS na mão, pode ser difícil encontrar a livraria nos próximos dois meses. Não se preocupe, ela não desapareceu nem vai desaparecer, a fachada é que vai ter temporariamente um aspeto novo. Até junho, substitui-se o estilo neogótico por uma tela moderna, pintada ao vivo por dois artistas portugueses: MrDheo e Pariz One.
Não é um ato de vandalismo, a proposta foi feita pela Lello ao MrDheo para “dar alguma vida à emblemática fachada enquanto esta está coberta por andaimes”. José Manuel Lello diz que a ideia de pintar o mural surgiu da livraria, mas o conteúdo “é da responsabilidade dos artistas” a quem foi pedido que “fizessem uma interpretação do edifício da livraria, que enquanto criação artística, não seria uma reprodução, por isso a obra de arte é deles”.
“Dois grandes writters. Zero palavras”
A parte central, a cargo do MrDheo, “é como se fosse uma mesa de um escritor antigo, os livros, a caveira que nos leva até Shakespeare e Hamlet, a vela, uma coisa mais centenária”. Já o background, conta Pariz, “é a minha interpretação do que seria um vitral de hoje em dia, 2016, 2026, 2056, um vitral mais futurista”. O writter diz que o objetivo “é juntar o público mais antigo da Lello com o mais novo, que continua a ler e a interessar-se”.
Pariz nunca tinha entrado na Lello, apenas conhecia a fachada e admite ter-se sentido “super surpreendido” quando recebeu um telefonema de MrDheo a propor um trabalho para a livraria. Confessa ainda que “apesar de ser um grande orgulho, numa fase inicial até estava com receio, pela importância que tem.” O artista diz que a fachada da livraria que fez 110 anos este ano “não é só mais um mural, acarreta outro sentido de responsabilidade”.
Os dois artistas, que têm um colectivo chamado “ARMU-YAMA”, começaram o mural na quinta (21) e vão estar até domingo (24) a pintar ao vivo a tela que, quando a fachada original estiver recuperada, será exposta noutros edifícios do país.
Na opinião de José Manuel Lello, as obras de restauro deixam as pessoas que passam “surpreendidas, como acontece de vez em quando a todos nós, já me aconteceu ir a Londres e ver o Big Bang tapado” e algumas ficam “mais ou menos desiludidas”. Com a criação do mural “as pessoas têm uma experiência diferente e também gostam muito do que estão a ver.”
Já dentro do edíficio, quem entra na livraria num dia de sol e sobe a conhecida escadaria, não consegue deixar de reparar na diferença de luz. O teto, antigamente revestido por um amplo vitral, está agora tapado. Mas a luz ainda é suficiente para ver o que realmente interessa. Nas prateleiras, folheiam-se livros e por entre muitas palavras soltas tenta-se chegar a acordo sobre qual levar para casa.
Na primeira fase das obras, a livraria só fechou durante dois dias enquanto os andaimes eram montados. Vai estar em pleno funcionamento enquanto o vitral do teto é retirado e restaurado pela primeira vez desde que a livraria abriu há 110 anos. Além do peso de mais de um século, os 3 mil visitantes por dia aceleraram o desgaste do edifício que é “património histórico e cultural”.
Metade livraria, metade atração turística
Quanto a isto, José Manuel Lello diz ter “a perfeita noção” que a Lello tem duas realidades: “somos uma atração turística e somos uma livraria. Tentamos conciliar essas duas atividades e tentamos ser bons nessas duas valências, mas de facto grande parte do nosso sucesso provém do facto de sermos uma atração turística.” Mencionado em todos os guias turísticos da cidade do Porto, este espaço atrai milhares de visitantes por dia à procura de rodear-se de magia dentro e fora das páginas dos livros. O responsável pela livraria ressalva que “só somos uma boa atração turística enquanto formos uma boa livraria, porque senão passaríamos a ser um museu de algo que tinha desaparecido e seríamos muito infelizes.”
No dia Internacional do Livro tenta-se contrariar a ideia de que os livros impressos são coisa do passado. De acordo com o editor, esta afirmação “não vai de opiniões”. E se “houve livros e categorias de livros que desapareceram completamente”, há também “estatísticas, há números que indicam que no último ano e pela primeira vez houve uma inversão”. A inversão que José Manuel Lello refere é um “decrescimento do livro numérico e aumento do livro em papel”.
Parecem boas notícias para o negócio de venda de livros, e não hesita em declarar: “não acredito no fim das livrarias”. No entanto, tem noção que se “está a viver um momento que não é dos melhores” e que “é complicado para muitas livrarias independentes”. Quanto à Lello, o futuro passa por se “adaptar e ser uma livraria atual, uma livraria moderna, uma livraria do século XXI”.
Desde que a entrada é paga, que se verificou “um aumento de mais de 3 vezes de vendas de livros”. “A maior parte das pessoas desde que nós pusemos há alguns meses atrás este sistema de vouchers para regular a entrada, desconta os vouchers e compra livros. Portanto, quem quiser comprar aqui um livro, não paga rigorosamente nada pela visita”.
O editor diz que “a maior parte das pessoas compreendeu bem esta situação”(antes a entrada era gratuita, desde Julho do ano passado custa 3 euros que podem ser descontados na compra de um livro) e que a livraria tem “também uma oferta bastante adequada aos visitantes”. Além dos turistas, diz haver também entre os portuenses “uma percentagem importante que são nossos clientes, e muitos deles clientes assíduos”.
No dia 23 de abril assinala-se o Dia Mundial do Livro e Dos Direitos de Autor, dia bem presente na memória do responsável da livraria mais emblemática do país, que diz ter vivido em força na Catalunha, há cerca de 20 anos, num congresso da União Internacional de Editores. Agora, anda a ler o novo livro de Inês Pedrosa, “Desnortes”, na versão bem palpável e que dá para virar e cheirar páginas, porque era assim que era antes e que devia continuar a ser, agora e sempre.