Cultura
MANUEL CARDOSO COM SOLO DE STAND UP NO SÁ DA BANDEIRA: “VOU DAR A CARA PELA NOVA GERAÇÃO DE COMEDIANTES”
Sexta-feira, dia 18, o humorista Manuel Cardoso estreia-se no Porto com “1994”, o seu espetáculo a solo onde anuncia ter chegado a “conclusões corrosivas sobre o péssimo exemplo de millennial em que se tornou”. Tem 22 anos.
Falamos com o Manuel sobre o seu percurso na comédia, o espetáculo que diz ser o seu “bebé de carreira”, o humor em Portugal e o geral estado das coisas.
O Manuel atrás de uma página de Facebook e atrás de uma câmara de vídeo é o mesmo que vamos ver no Sá da Bandeira em frente a centenas de pessoas?
Acho que, nesses casos, um comediante nunca é exatamente o mesmo. Mas as pessoas dizem bastante que eu sou diferente na intimidade e em palco. Como eu sou muito tímido normalmente, em palco não posso ser, ou tenho de usar isso a meu favor.
Gozas com essa tua timidez em palco?
Gozo, gozo, e tem de ser. Eu comecei a fazer comédia porque gostava de escrever comédia e não necessariamente de interpretar comédia. Para fazer stand up tive de dar um salto, ir buscar uma coragem que eu não tinha. Por isso sim, gozo com isso, mas também me dizem que ainda passo alguma imagem de timidez para o público, mas que a uso em meu favor. Não que a use bem ou mal, mas construo a persona de palco com ela.
Fizeste uma piada no Facebook, na altura da saída dos resultados das candidaturas ao ensino superior em que dizias ter entrado no “Instituto da Desilusão de Toda a Família”. Isso foi um pouco autobiográfico?
(Risos) Claro. Sem dúvida, porque eu entrei na faculdade com 18 anos, na mesma altura em que me inscrevi no curso de escrita com o Rui Sinel de Cordes e foi aí que me deu o clique de querer fazer isto. Já queria fazer antes e já tinha feito de forma muito espaçada, mas foi a partir dos 18 anos que decidi fazer o que queria e comecei a dar menos importância àqueles objetivos que temos todos e comecei a querer seguir o que eu realmente queria há já alguns anos.
Estive dois meses em História, dois em Comunicação e outros dois meses num curso de escrita na Restart em Lisboa. Mas isto não justifica. Podia ter feito um curso e continuado a trabalhar, mas era uma questão de entusiasmo. Eu nunca gostei muito do “estudar por estudar” e “cumprir esses objetivos por cumprir esses objetivos”, ou seja, pus as coisas numa balança e optei pela comédia. E em jantares de família é muito difícil explicar isso. Os meus avós, pelo menos da parte da minha mãe, são muito tradicionalistas. Queriam um advogado ou um jornalista, como a filha deles. Por isso não é fácil estar sempre a responder à pergunta: “mas o que é que fazes realmente?”.
Mostras-te muito maduro na escrita. Não só na estrutura, mas nas ideias, no conteúdo. O humor político nunca foi uma opção?
Obrigado (risos). Se calhar quando comecei a escrever, em blogs e assim, tentava até ser crescido demais, tentava mandar postas de pescada políticas… Mas depois cheguei aos 18 anos e começou a surgir a escola do humor do “falar do que sabes”. Senti na altura que estava um bocado pedante e arrogante, e uma pessoa de 30 anos vai sempre desconsiderar as minhas opiniões políticas, como é natural, por isso comecei por falar mais da minha vida e do meu quotidiano. Eu quero chegar ao humor politico, é para aí que quero ir, sim. Talvez já esteja cansado dos temas do quotidiano. A minha vida pessoal estará sempre presente na minha comédia, sem dúvida, mas os meus interesses vão mudando. Quero dar esse salto.
Escreveste no SOL, sobre o festival Fringe em Edimburgo, que “o Fringe não se limita”. Porque é que Portugal não tem tradição humorística que permita um festival de humor nas dimensões do Fringe?
Não tem já, ainda está a surgir essa tradição. O stand up será sempre uma importação, nem sequer temos tradução direta para o termo. Todo este imaginário da comédia é de importação. Nós, como se calhar Espanha e Itália, estamos a evoluir nesse sentido, mas ainda temos certos limites, um certo pudor religioso do sul da Europa.
Mas estão a surgir certas coisas. O que há [em Portugal] é pouco mas é muito bom comparativamente com o que havia há 10 anos. O Famous Fest, o SolRir… é o mercado que parte muito mais da notoriedade do indivíduo do que propriamente da existência de um público geral fã de comédia. Mas isso também está a surgir, muitos stand up comedians da minha geração têm criado esse público que vai ver comédia porque é giro. Por exemplo, no Fringe há muitas famílias a ir, é um plano como ir ao circo ou ao cinema, e cá isso ainda não é assim. É mais uma questão de fãs. Os fãs vão ver os seus favoritos.
Achas que existe a possibilidade de estarmos a regredir na abertura de mentes e ideias, com a vaga que se adivinha da extrema-direita? Achas que a nossa geração é a mais aberta e informada, mas precisamente por isso terá mais liberdade do que nunca para ser fechada e extremista?
Acho que sim. Acho que, obviamente com todas as ferramentas que temos hoje, de redes sociais, ferramentas de pesquisa e todo o conhecimento que temos ao nosso dispor, temos a capacidade de ter uma mundividência muito maior do que tinham as pessoas há 30 anos. Os números também não mentem: há pessoas mais educadas hoje em dia. A questão é: ao passo que, antes das redes sociais, existia uma maior noção de confronto em relação ao conhecimento, hoje em dia é mais fácil fechares-te numa bolha das tuas próprias ideias. Só o facto de apagares do teu Facebook as pessoas com quem não concordas, as cookies do Google que te levam ao encontro daquilo que já pesquisaste anteriormente… é muito difícil dissociarmo-nos dessa bolha. Acho que isso se repercute no facto do Trump ter ganho as eleições.
Nós, e digo “nós” do ponto de vista das pessoas com frequência académica, que lêem jornais de referência, que na televisão vêem programação intelectual, fecharam-se nessa bolha, o que fez com que ignorassem a existência de outra fação da sociedade que, pelo seu próprio descontentamento, criou ideias que são completamente díspares. E nós ignoramos logo à partida essas pessoas, porque achamos que tinham ideias de há 30 anos e que não tinham direito a falar. Mas têm e é perfeitamente normal que essas ideias surjam. E é por isso que é tão importante o confronto de conhecimento. E, na minha ótica, já nem há bem a questão da esquerda e da direita, há um confronto entre o universalismo e o nacionalismo. A elite está numa bolha, os blue collars estão noutra bolha, principalmente por causa das redes sociais e pelo enclausuramento que elas causam.
Porque é que temos tão poucas mulheres nos palcos de stand up portugueses?
Temos poucas e sem dúvida que há vários fatores que contribuem para isso. É uma pergunta colocada a vários humoristas e todos dão uma resposta “muito certa” para isso, mas eu não acho que exista uma resposta certa. Primeiro, não podemos tirar da equação o machismo estrutural que existe na sociedade e que, então em Portugal, está muito patente. No nosso contexto, o palhaço tem de ser o homem, uma mulher a fazer palhaçadas é “pouco séria”. Aliás, mesmo um homem que esteja a ser muito brincalhão é pouco sério em Portugal. Fazer uma descontextualização ou uma desconstrução das coisas é ser pouco sério. E então com as mulheres pior ainda. Somos um país machista, com uma herança católica. É difícil para as pessoas distanciarem-se do facto de ser mulher para ouvirem humor da parte dela. Há atrizes de comédia, mas não há muitas criadoras. Interpretar comédia é uma coisa, dedicar a sua vida à parvoíce já é mal visto por si – pior ainda se for uma mulher.
O humor na nossa geração acaba por ser superficial. Predominam as piadas sobre as redes sociais, o humor do quotidiano. É assim porque não nos importamos com os grandes temas?
O que é reconhecível no humor é o que cria engagement, e é chato falar de engagement quando falamos de algo que é suposto ser uma arte, como se estivéssemos a tratar de marketing, à procura do que as pessoas gostam. Mas a verdade é que tens de usar várias ferramentas para conquistares o teu espaço e depois teres uma atitude construtiva com o teu humor, o que eu acho que tens sempre. Eu também acho que as redes sociais criaram uma “elite de segunda”, ou seja, começou a considerar-se intelectualidade alguém pura e simplesmente ter razão. E isso influencia todos os que criam conteúdos para as redes sociais, tal como influencia os que acolhem esse conteúdo. Eu acho que muitos dos humoristas que estão a aparecer agora apelam ao “demasiado bom senso”, dizem o óbvio, e muito porque é o que as redes sociais permitem. Se fazes um texto muito grande, muito denso, só vais chegar a um nicho. Mas quando já tens o teu nome acho que tens a obrigação de fazer apenas aquilo que te apetecer.
O que é que podemos esperar deste teu primeiro solo de stand up na sexta feira?
O que eu digo é sempre o mesmo: são piadas. E eu acho que, pelo que trabalhei em casa, que são as minhas melhores (risos). E acho que qualquer pessoa que venha do mesmo sitio identitário que eu vai-se reconhecer. Os millennials vão reconhecer-se. E mesmo para quem seja um bocadinho mais velho, malta dos 35, 40 anos, é um espetáculo giro para verem qual é a atitude da nova geração no mundo. É muito autodepreciativo, falo de muitos acontecimentos pessoais. Este espetáculo é um bocado o meu bebé de carreira até agora, e basicamente vou dar a cara pela nova geração de comediantes na sexta feira.
Qual é o teu processo criativo para fazer um espetáculo de stand up de uma hora e pouco? Como limas as piadas e quanto tempo demoraste até teres o “1994” finalizado?
Demorei três anos, porque este espetáculo é um bocado a amálgama do meu trabalho nos últimos três anos, mas foram anos em que estava a começar e que tive de deitar muitas coisas ao lixo. Por isso é o conjunto de trabalhos passados e muito material novo que escrevi de propósito para este solo porque, de tão pessoal, não fazia sentido estar noutro sítio.
Escrever para stand up é experimentar: tens de escrever em casa, escrever o que tens na cabeça. E como a minha herança era a escrita, tive de trabalhar o passar das ideias de escrita para o que é verosímil uma pessoa dizer, que não é exatamente igual. E portanto é isso: escrever piadas, experimentar, levar para palco em sítios menos comprometidos e no final só levares o teu melhor.
O que está prestes a ser o “homem mais poderoso do mundo” é um bom exemplo do conceito de “duplopensar”*. Como é que estamos a chegar tão perto de 1984?
Os sinais já estavam há muito tempo a aparecer. E não é do Trump, a culpa não é desse movimento. Aliás, responsabilizo muito mais o movimento que a Hillary Clinton acabava por representar pela ascensão deste novo 1984. E não só o sistema político, mas também as corporações são todas coniventes com um mundo de total vigilância e de total controlo de pensamento. Acho que, na verdade, vivemos numa pós distopia de Orwell, ou seja, aquilo que Orwell previu hoje foi implementado de uma forma muito mais suave. Vivemos numa democracia, mas concordamos em ser vigiados. Perante fatores de medo, como uma ameaça terrorista, assinamos todos esses papéis. O Edward Snowden colocou uma excelente questão, que é fazermos uma escolha ou continuarmos. Porque a verdade é que, em prol da segurança, já perdemos toda a nossa privacidade.
No final da conversa, fizemos uma “experiência”. Perante um tema, o Manuel tecia o mais breve comentário possível. Segue-se o resultado.
TRUMP: Sem retorno.
A NOSSA PRIVACIDADE: Em risco.
ESTUDANTES ALEMÃES EM ERASMUS EM LISBOA: Bom material (risos)
HIPSTERS PSEUDO-INTELECTUAIS: Muito prazer (risos)
AS TUAS INFLUÊNCIAS: Gato Fedorento, The Office, Jim Jefferies, …
TU DAQUI A 10 ANOS: Não viver com a minha mãe, espero… (risos)
O espetáculo “1994” estreia no Porto, no Teatro Sá da Bandeira, dia 18 de novembro, e os bilhetes podem ser comprados aqui.
*”Duplopensar” é um conceito criado por George Orwell na sua obra 1984 e que significa “o poder de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo”.