Cultura

O SOLDADO DESCONHECIDO

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O espetáculo “O soldado desconhecido” surgiu no âmbito da 8ª edição do festival “Música e Revolução”, que tem este ano o tema “Música e Conflito”. O espetáculo incluiu duas peças: “L’Histoire du soldat” e “Le soldat inconnu”.

A primeira acompanhou, ao longo de mais de uma hora, a história de um Soldado que, regressado da guerra, apenas por dez dias, é seduzido e enganado pelo Diabo, perdendo a oportunidade de ser reencontrar com a mãe, namorada e amigos. Ao mesmo tempo, vende ao Diabo o seu violino em troca de um livro que lhe permite obter todo o dinheiro que quiser. A peça, tão bem executada pelo Remix Ensemble, agrupamento de lugar cativo na Casa da Música, deixou o público verdadeiramente maravilhado com a interpretação que Lionel Peintre, narrador da história, lhe deu. Não levando para o palco mais do que a voz, a expressão facial e o esbracejar como adereços, o barítono intercalou três vozes diferentes – narrador, Soldado e Diabo – sem nunca deixar espaço para dúvidas sobre quem era quem.

A peça, baseada em contos populares russos, nunca cantada, mas sim narrada, ressuscitou questões desde sempre e para sempre essenciais – desde a desorientação do homem face à vida, passando pelo valor do dinheiro, até à solidão. O Soldado chega a dizer, nesta que é uma tradução do texto narrado em francês: “Se estou morto entre os vivos, a fortuna não vale nada.”

Na enérgica “Marcha Triunfal do Diabo”, derradeira de “L’Histoire du soldat” e que assinalou a vitória do Diabo, Lionel Peintre saltou para o lugar do maestro e assumiu o papel de condutor dos músicos.

“Le soldat inconnu”, peça do grego Georges Aperghis encomendada pela European Concert Hall Organisation para assinalar o centenário da I Guerra, teve a sua estreia mundial neste espetáculo da Casa da Música. Numa peça completamente díspar, embora inspirada por “L’Histoire du soldat”, assiste-se, através de um tom sinistro e denso, ao abandono do protagonista, um soldado, a uma fragmentação e loucura descompassada.

Mal começa a peça, o Soldado, na voz de Peindre, dispara repetidamente inúmeras palavras avulso através de gritos dilacerantes: alone; solo; lost; single man; only man. “Le soldat inconnu” começa assim com o Soldado, saindo do meio de escombros de guerra, o único sobrevivente entre os mortos.

Ao longo de uma atuação bem mais curta do que a primeira, quem observou nunca deixou de sentir-se sem fôlego, como o narrador que, sempre que falou, o fez de forma ofegante, quase como se ainda tateasse o que o rodeava. Aperghis construiu o texto com base num excerto de Kafka sobre a Torre de Babel e permitiu, entre assobios desconcertantes de violino, ou do retumbar da percussão, explorar a realidade da construção da Torre, que acabou por representar mais morte do que vida. Entre silêncios, gritos, gargalhadas enlouquecidas e frases soltas num discurso desconexo, o Soldado declara “In the beggining there was order”, que deixou a dúvida se ele se referiria efetivamente à construção da Torre ou, se porventura, não falaria de si próprio.

Se em “L’Histoire du soldat”, o Soldado se autointitula um morto entre os vivos, em “Le soldat inconnu”, o Soldado é um vivo entre mortos. O primeiro, num tom triste, o segundo, variando entre a loucura e a letargia.

Todo o espetáculo é uma lição do que a guerra faz ao homem e da solidão que esta representa. Relembra, por alguns momentos, o que Baptista-Bastos escreveu um dia: “As criaturas habituam-se a tudo: à cegueira, à fome, à miséria, ao opróbrio. Só não se habituam à solidão.”

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