Cultura

HÁ ARTE NA RUA DA ALEGRIA

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Nesta antiga fábrica de meias, localizada no número 341 da Rua da Alegria, habitam 19 estruturas dedicadas a áreas artísticas que vão do teatro ao circo, passando pela  música, fotografia, marionetas e artes plásticas. O edifício reúne salas de ensaio, oficinas, escritórios e espaço de armazenamento para dezenas de artistas em busca de um lugar para exercer a sua vocação e desenvolver novos projetos.

A Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo (ESMAE) e o Instituto Politécnico do Porto (IPP) cederam o espaço que a Fábrica ocupa gratuitamente, deixando  apenas a manutenção do edifício a cargo dos residentes, o que contribuiu para uma atitude de conservação e de trabalho de grupo entre os vários projetos, nas suas criações e na administração logística da Fábrica. Estes valores, no entanto, já os trazem de trás, de quando experimentaram os métodos de ensino da ESMAE, que, segundo Julieta Guimarães, membro do coletivo Erva Daninha, “faz questão de que todas as áreas [artísticas representadas pela ESMAE] participem em todos os projetos, e isso dá-te um sentido de coletivo e de respeito pelo outro (…) que acaba por ficar enraizado.”.

Para os coletivos da Fábrica, Francisco Beja foi um dos grandes impulsionadores do projeto, ao entregar o espaço que serviria de expansão à ESMAE. Uma área dedicada ao ensino da música e da dança que acabou sem efeito, conta-nos Francisco Beja, numa visita à ESMAE, “Como é que surgiu a fábrica? A fábrica foi um espaço aqui perto que foi comprado para a expansão da escola. Fundamentalmente como uma ideia que era vir a construir um espaço que permitisse alargar o espaço de ensino da música e criar um espaço para o ensino da dança. Foi assim que aquilo foi comprado, é evidente que depois começou a decair o investimento no ensino superior e as oportunidade de construir foram desaparecendo, ficou aquele espaço ali um bocado devoluto(…) Era preferível ter gente lá dentro, gente com vontade e ideias.” A iniciativa, lançada por um grupo de diplomados, começou de forma informal com uma ligação mais forte com o teatro.

Existe muita entreajuda dentro destas paredes. Há muita partilha de materiais, ferramentas e conhecimentos entre os coletivos. Se sobram madeiras num lado, empresta-se ao outro, e em troca recebem-se uns acrílicos ou um conselho sobre onde comprar tecidos ao melhor preço. Toda a ajuda faz a diferença e nada se desperdiça. Numa zona da garagem, onde se podem ver desde placas de metal, madeira, plástico, a cadeiras e mesas, guardam-se materiais vindos, não só dos projetos da Fábrica, como também de outras instituições culturais privadas na cidade do Porto e que de outra forma iriam para o lixo. Trabalha-se muito à base da reciclagem, rejeitando-se o estigma de que os palcos e cenários têm que ser ricos e luxuosos.

Neste processo de acumulação de materiais, encontram também os meios para requalificar os seus espaços de criação e ensaio. Julieta Guimarães, membro de um dos coletivos que iniciou o projeto, o Erva Daninha, e atual responsável pelo “condomínio” da Fábrica, frisou “(…) todos os cêntimos contam. Tudo o que estão a ver à vossa volta foi reciclado. Claramente nota-se o nível de improvisação, estas madeiras foram recicladas, as paredes em vez de serem feitas com tijolos são em alcatifa. Mas funciona, e está aqui a prova de que não precisamos de muito.”. De facto, a Fábrica tem a capacidade, na sua gestão interna, de disponibilizar espaço aos seus membros, adequando-os à prática de cada um, e de os reestruturar, sempre que necessário.

Outra forma de poupar é recorrer às pequenas lojas de rua que cada vez mais se vêm obrigadas a fechar, derrotadas pela concorrência. Os coletivos vão à rua da Picaria buscar as madeiras, os artigos tecnológicos encontram-nos na própria rua da Alegria, e muitas das vezes, mais barato do que nas grandes superfícies. Depois do Porto 2001 e de Rui Rio enquanto presidente da câmara municipal do Porto, são raros os projetos artísticos que conseguem financiamento. Há, por isso, que poupar no desnecessário para que seja possível manter estes coletivos a funcionar.

A Fábrica não é um sistema fechado. As salas de treino abrem as portas ao público geral e tornam disponíveis materiais que não se encontram em lado algum, nomeadamente trapézios, tecidos e outros objetos circenses. Há também projetos voltados para a comunidade entre aulas, espetáculos e visitas guiadas. Um bom exemplo é o da iniciativa Fábrica à Mostra, realizada no passado mês de janeiro, com o objetivo de desmistificar e dar a conhecer as práticas da Fábrica.

Num fenómeno de contexto, a Fábrica acolhe a energia de uma geração que soube adaptar-se às restrições e trabalhar com elas. Apesar de albergar estruturas independentes, cada uma com a sua missão, é em si um coletivo onde a maior partilha é a de recursos humanos. É frequente trabalharem em parceria na conceção das peças, contando para isso com vários cenógrafos, uma figurinista, uma fotógrafa e uma produtora, num mesmo edifício.

O ambiente de autogestão exige, àqueles que participam do grande coletivo da Fábrica, formação, académica ou não, ou experiência profissional. As candidaturas são aceites quer sejam ex-alunos da ESMAE, quer sejam de outras escolas, sendo decidido pelo condomínio a sua entrada num processo dinâmico e informal. Quatro dos atuais operários têm formação na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Porto e já integraram o grupo.

O que mais preocupa os artistas da Fábrica é a falta de espaço para ensaio, uma inquietação que Francisco Beja identifica prontamente “O que acaba por ser uma das maiores dificuldades para a malta mais nova não é o sítio onde apresentam, mas sim  o espaço de ensaio, o espaço de produção.”. A reestruturação do espaço é o ponto fulcral das negociações que se estabelecem com a Câmara do Porto, “Há que criar um diálogo com a Câmara, já que existem imensos espaços devolutos na baixa do Porto e um projeto  como a Fábrica, de criadores novos, que precisam de encontrar um outro espaço, pode adquirir nova vida ali”, admite Francisco Beja.

A falta de cobertura por parte dos órgãos de comunicação dificulta a expansão do projeto que, mesmo assim, garante sempre um público. Da necessidade de criar espetáculos apelativos com pouco nascem conceitos alternativos que, silenciosa e disfarçadamente, estão a renovar a arte e a cultura portuenses, naquilo que poderá muito bem ser um importante movimento artístico.

As perspetivas para a Fábrica são incertas. Ideias não faltam, falta o investimento para as suportar, vontade de produzir não falta, falta o espaço para ensaiar, audiência não falta, falta um público disposto a pagar, trabalho não falta, mas falta emprego.

A Fábrica da Rua da Alegria procura, desde a sua génese, ser mais que um cluster de indústrias criativas. É um espaço de fruição artística, que se afasta da área do entretenimento e da produção, apontado para um objetivo que não visa o lucro, mas o estímulo cultural. Como refere Julieta Guimarães, “A fábrica é tudo e não é nada. A verdade é que acabou por se transformar num movimento que simboliza muito as gerações dos anos 2000 (…), isto porque em si a Fábrica não é um objeto artístico ou um conceito, é meramente o espaço. Mas o espaço que permite que todos os projetos que aqui se encontram sobrevivam e prosperem.

Quem está na Fábrica?

  • Encontramos 7 grupos dedicados ao teatro. A Pele dedicam-se à abordagem comunitária e participativa do teatro oprimido. Os Radar 360 são um grupo de teatro de rua. Rei Sem Roupa prima pela comédia em registo físico. Teatro a Quatro leva o teatro aos bebés, criando peças originais. Tenda de Saias desenvolvem projetos itinerantes ligados à interpretação da poesia. Teatro do Frio pesquisa teatro experimental. Palmilha Dentada, a companhia mais antiga, apesar de integrada na Fábrica mais tarde, oferece uma abordagem cómica de provocação social e política, com textos originais de Ricardo Alves.
  •  A desenvolver cenografia estão os ex-alunos da Faculdade de Belas Artes Ana Guedes, Emanuel Santos, Mariana Bacelar e Sandra Neves. Emanuel é também o percursor do projeto Santa Cecília e está ligado à música com projetos como Guitar Cigar Box. Sandra Neves também trabalha com marionetas e, juntamente com Mariana Bacelar, produz adereços.
  •  Os Erva Daninha, um dos grupos que iniciou o projeto da Fábrica, dedica-se ao circo contemporâneo. Mantêm uma relação estreita com as técnicas circenses tradicionais. De uma prática comum em Espanha e França, trouxeram os treinos abertos, todas as quartas feiras a partir das 19h, para profissionais de circo e para aqueles que queiram apenas assistir.
  •  Paulo Preto fotografa e Inês Mariana Moitas cria e aluga de figurinos. Pé de Cabra produzem e vendem espetáculos e Limite Zero manipulam marionetas. Fado em Trio é o único projeto musical que, de momento, integra o espaço.

 

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