Cultura
“CONVERSA DE BASTIDORES” NO MAUS HÁBITOS
André Forte trabalha na Lovers & Lollypops, uma editora e promotora de bandas portuense, que conta já com doze anos de existência. Daniel Ramos Pires é o diretor do Maus Hábitos, um “espaço de intervenção cultural”, na cidade do Porto. Hélio Morais é o baterista dos PAUS e Linda Martini e gestor do projeto HAUS. Miguel Marques trabalha na Popstock! Portugal, uma distribuidora de labels independentes. Por fim, Tiago Castro, que trabalha na SBSR.Fm.
Esta é a constituição do painel que esteve à conversa cerca de uma hora, abordando o panorama musical português. Entre parcerias, serviços de streaming, a Eurovisão, festivais e a Sociedade Portuguesa de Autores, vários foram os temas discutidos, nesta que foi a primeira “Conversa de Bastidores”, uma inovação na iniciativa Super Nova, promovida pela Super Bock no Maus Hábitos.
A sessão inicia-se com o acontecimento de maior impacto no quadro musical português dos últimos dias: a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão. O moderador, Tiago, questiona se o festival pode ser relevante para a música independente portuguesa e o painel é unânime: “Não vai mudar absolutamente nada”, como é resumido por Miguel Marques.
Hélio Morais, o baterista dos PAUS e Linda Martini, louva a RTP pela aposta “arriscada” e Daniel Pires conta que ficou “super contente” com o título conseguido. André Forte, o único que assistiu ao programa, vê as vantagens a nível do turismo, mas, quanto à música independente em Portugal, “essa vai ter de encontrar outras formas de expansão lá fora e há de haver outras plataformas melhores que a Eurovisão”.
É lançada a segunda questão: Como se vive da música em Portugal, trabalhando num género mais alternativo e com editoras mais independentes?
André, Daniel e Hélio abordam o nascimento dos seus projetos: Lovers & Lollypops, Maus Hábitos e HAUS, respetivamente.
A Lovers, como é tratada por André, surge da oportunidade. O talento existente justificou a sua criação. A nível do mercado, existia uma lacuna e era necessário que alguém apostasse nesse estilo de música. “Se não há mercado, é preciso trabalhar para que ele exista.” André conta ainda que inicialmente “era pura carolice”, com a vontade de se verem representados no mercado a falar mais alto.
Já o Maus Hábitos surge em 2001. O fotógrafo e professor que o idealizou, Daniel Ramos Pires, revela que a ideia desponta dos poucos espaços, existentes no país, dedicados à música ao vivo, e dos poucos concertos a que tinha assistido: “one-man shows mal feitos e mal organizados” (“eram uns tipos a cantar musiquinhas, nuns barzecos, num vão de escadas”) e para ver espetáculos “tinha de ir a um Coliseu”.
Faltava um espaço “livre, informal, alternativo”, que fosse consistente e permanente. Atualmente, contam-se mais de 5 mil concertos naquela casa. Daniel relaciona o nascimento da Lovers e das várias editoras da cidade com o aparecimento de espaços que premeiam a música ao vivo e diz que “uns sem os outros não podiam fazer acontecer”.
Hélio recorda o seu percurso no mundo da música. Decidiu que queria ser “essencialmente músico” em 2008, cinco anos após a formação dos Linda Martini. Precisava de uma entidade patronal que compreendesse que à quinta e sexta não iria trabalhar por ter espetáculos e decidiu apostar nas agências.
Conseguiu ser contratado pela agência dos Linda Martini e, despontando sorrisos na audiência, diz que “se eu não fosse tocar, eles não recebiam comissão, portanto parecia-me um negócio bastante razoável”. Com alguns anos de agenciamento na bagagem, cria a Concertina, com o Filho da Mãe e os PAUS, juntando-se os Capitão Fasto e os You Can’t Win, Charlie Brown.
Quando Fábio e Makoto (membros dos PAUS) encontram um local para fazer um estúdio de gravação, com mais espaço que o necessário, o agenciamento transfere-se para lá: “Acabei com a Concertina, passou a ser HAUS”, denominação que serve o estúdio e a agência.
Quanto a ser-se só músico “é complicado”. “Sinto-me privilegiado por ter duas bandas com algum mediatismo, e mesmo viver só dessas duas bandas é possível, mas eu não fazia férias.”
Quando à distribuição de labels independentes em Portugal, Miguel Marques afirma que “não há muito dinheiro a fazer”. Funcionando cada vez mais como um complemento e não como um fim em si mesmo, a distribuição destes catálogos precisa de “muitos nomes a vender pouco para haver alguma razão de existir”.
Abordam-se os serviços de streaming, em especial o Spotify. Miguel defende que o Spotify não assume uma posição tão relevante em Portugal, em comparação com o resto da Europa, pela concorrência existente (MEO) e por estarmos ainda muito conectados ao Youtube: “Estamos de uma forma geral sempre quatro anos atrás das tendências”. Hélio garante que com o pagamento dos serviços de streaming “nem pagava o telefone”.
A forma como o dinheiro é atribuído nestes serviços não é clara. Entre colegas, ouviu que 100 mil plays equivaleriam a 400€ e Miguel Marques assegura que, se assim o é, provavelmente só serão contabilizadas as plays dos utilizadores Premium. Hélio queixa-se da não existência de “uma explicação de como funciona o negócio” e reconhece que “entre o play e o músico existem demasiados intermediários”.
As bandas da Lovers & Lollypops estão todas nas plataformas digitais, mas o rendimento que daí se retira é residual. André diz existir uma “nuvem de fumo” em relação a estes pagamentos e pede algum esclarecimento, nomeadamente no gap entre “a ninharia” que o Youtube dá, comparada com a “já ninharia” resultante do Spotify.
Vê as maiores vantagens no Band Camp e classifica-o como “uma boa plataforma para ouvir música e vender música”, que permite uma “matemática mais segura para uma editora independente”. Sendo a Lovers uma editora que valoriza a vertente física da música (o vinil, a cassete) as plataformas digitais servem apenas para “levar as bandas a tocar e a vender o que têm”. “Acreditamos que a música tem que ter esse lado ritualístico. O processo de ouvir um vinil é um ritual, assim como ouvir uma banda ao vivo: a perceção é sempre diferente, e o nosso modus operandi é orientado para isso”.
E quanto às parcerias entre a música e marcas?
Daniel defende estas parcerias e declara que a marca funciona como a “alavanca” que corta os riscos de quem é responsável pelos espetáculos ao vivo. Refere que a marca que patrocina o evento, a Super Bock, que proporciona as noites “Super Nova” no Maus Hábitos, oferece segurança à casa, ao mesmo tempo que cria a oportunidade para os artistas de se darem a conhecer, quer ao público quer à marca.
Pega numa outra temática geradora de polémica: A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).
É “o grande elefante da sala, grande e gordo”, afirma Daniel. Revela que o espaço que gere paga mais de 4000€ por ano à SPA para fazer os concertos. “Duvido que as bandas recebam 10% disso. Não quero pagar menos, quero que os músicos recebam mais. Tem de haver transparência nesta história.”
Quando questionado, Hélio diz: “Falamos daqui a um ano”. Conta que já travou todas as lutas que podia travar dentro da SPA; tentou perceber, enquanto músico, o funcionamento dos pagamentos: “Quanto mais discuti e quanto mais ia ao fundo, mais me senti impotente a obter a informação que necessitava”. Tornou-se cooperador da SPA este ano, para ter acesso às assembleias e perceber, finalmente, como é distribuído o dinheiro que chega à SPA: “Parece-me pouca gente a decidir o futuro de muita”.
Passa-se ao Milhões de Festa, festival que celebra a 10ª edição, a realizar em Barcelos, de 20 a 23 de julho, e o André, da Lovers, editora organizadora do festival, define-o como o “festival que tem lotação máxima de 3500 pessoas e se propõe à loucura de agendar 50 bandas”. A relação com as marcas é relevante, mas têm de ser bem escolhidas e ir de encontro ao público para que se direcionam. Diferencia o Milhões de um Rock in Rio, por exemplo, que tem um “ambiente poluído”, com “marcas, logos e banners em todo o lado”.
Das afirmações do André, Miguel aborda a nossa evolução enquanto sociedade: “Cada vez mais queremos ver muita coisa em pouco tempo”, e relaciona-o com a parceria festivais/marcas: “Proporcionar isso a um preço que não seja assustador sem marcas é praticamente impossível”.
Ainda dentro dos festivais, discute-se a distribuição dos músicos pelos palcos, nomeadamente a divergência que é aplicada aos artistas portugueses vs. estrangeiros.
Hélio hesita. “Há festivais em que eu enquanto músico português me sinto mais respeitado. Mas eu não quero ser respeitado enquanto músico português, quero ser respeitado enquanto músico”. E acrescenta: “Não sou um gajo de ideias fixas, acho que tudo é válido, desde que devidamente justificado”.
Daniel confessa que, entre o painel, é o que percebe menos de música. “Por isso mesmo convidei o Salgado para fazer a programação. Interesso-me por proporcionar experiências, proporcionar espaço e proporcionar oportunidade.”. Acredita que faltam pessoas capazes de programar bem.
A crítica estende-se à rádio que, de acordo com Daniel Pires, “não tem capacidade de seleção e programação de conteúdos e programas de autor que apostem neste tipo de música”. Aponta a crítica também às autarquias, que não apostam mais em concertos, o que leva a que tudo fique focado nos dois “polos extremistas, Porto e Lisboa”.
O moderador intervém e coloca a hipótese de uma rede de salas e programadores a pensar em conjunto.
Hélio relembra que essa ideia já foi colocada em prática, daí resultando a união entre os cineteatros e auditórios. Porém, falhou. Porquê? “Ou a programação falhou, ou não se conseguiu aproximar da população, ou não conseguiu despertar vontade e curiosidade”.
Aliando a programação à implementação de um hábito cultural a nível social, o dono dos Maus Hábitos prossegue com a crítica: “Não há formação e educação nesta área. Não existe uma sensibilização à música. Não existe o hábito de consumir música”. A nível da gestão pública, queixa-se que “criaram-se museus, criaram-se auditórios e não há ninguém capaz de os programar”.
André defende que o necessário é existir investimento. A gratuitidade é um meio para criar um hábito musical. Considera que as vantagens do investimento superam as desvantagens e que “às vezes, investir em cultura é estar a perder dinheiro durante alguns anos”. Acrescenta ainda o exemplo do festival que organiza: “O primeiro Milhões tinha mais bandas que pessoas que pagaram bilhete. A dimensão mudou. Criamos o hábito. As pessoas agora sabem que há ali algo que vale a pena ir”.
E, dentro do panorama português, como se “safa” um músico sem editora que está a começar?
Hélio desconhece a resposta a esta questão. Fala, contudo, da sua experiência em If Lucy Fell. “Ia procurar as editoras que faziam sentido, quase todas fora de Portugal, e mandava demos e e-mails, e, quando queria muito, telefonava.” Estabelece que a parte mais difícil é fazer com que a música chegue às pessoas. Para a solução, poderá contribuir “promover esse disco digitalmente e fazer umas cópias para vender em concertos, porque as pessoas nos concertos ainda gostam de comprar discos”.
Quanto a pôr discos de música independente em lojas como a FNAC, Miguel Marques fala num processo que poderá fazer repensar o ideal pré-concebido. Fazem-se 40 cópias de um disco e recebe-se “o dinheiro das quarenta cópias passados seis meses. Dessas quarenta, são devolvidas trinta; doze estragadas”. As lojas mais pequenas, nestes casos, são a melhor aposta.
André assegura que ter os discos presentes nas lojas é relevante para a Lovers, apesar de reconhecer que o grosso das vendas é feito através do e-mail. As FNACs, Wortens e afins oferecem facilidade na aquisição do produto musical, mas não conseguem atingir o público pretendido, pelo que a Lovers & Lollypops tende a apostar mais em lojas como a Louie Louie, onde o público encaixa no público-alvo da editora. “É bom perceber em que lojas é que temos de estar. Em plataformas maiores, o nosso público vai ser residual.”
A conversa está perto de terminar. André intervém: “Não falamos sobre o que é ser músico em Portugal!”, ao que Hélio replica “É fixe. Mas não temos direito a férias”, suscitando risos na audiência.
“Acho que as “Conversas de Bastidores” podem-se adensar, podem realmente trazer algo novo, pode-se tentar alterar alguma coisa, criar a rede [musical] que falta ou alimentar um pouco a rede que existe com algo mais.”, declara Daniel Pires.
“É uma questão de trabalharmos um bocado mais em sintonia. É a única forma de fazer isto crescer de alguma forma. O Maus Hábitos está aqui para fazer isso e continuar.”
Hélio aproveita-se das palavras de Daniel para expor uma caraterística da comunidade de músicos em Portugal. “Somos, comparando com outro tipo de áreas da arte, os menos cooperadores uns com os outros. Perdeu-se um bocado este sentido comunitário e de trabalhar em conjunto. Hoje em dia, começo a ver isso. Talvez por necessidade criou-se essa vontade. Somos poucos unidos, essa é a verdade.”
Tiago termina a conversa com uma mensagem de esperança no futuro, e, quanto a ser músico em Portugal, assegura que “há formas. Acaba-se sempre por encontrar formas”.