Cultura
DOIS ANOS SEM DAVID BOWIE
Muitos o conhecerão como a super estrela do glam rock que criou icónicas obras do início dos anos 70, tais como Hunky Dory, Aladdin Sane ou The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Poderão até estar familiarizados com a personagem principal da última e do famoso look do músico na fase em que Ziggy se deu a conhecer.
Outros saberão também que, sendo ele conhecido como O Camaleão, o trabalho de David Bowie passou por inúmeras “encarnações”, cada uma delas um exemplo da versatilidade, criatividade e singularidade de uma das mais respeitadas e adoradas figuras da música.
Foi no ano de 1976 que, já com um estatuto preponderante no panorama artístico, se apresentou como o icónico, mas controverso, Thin White Duke. Com o seu cabelo loiro impecavelmente penteado para trás e a elegante camisa branca que envergava em palco, a persona surgiu no importante disco Station To Station – que piscou o olho ao krautrock e ao art rock que viria a ser explorado com ainda maior entusiasmo nos seus trabalhos seguintes –, mas também coincidiu com um dos períodos mais complicados da sua vida pessoal. De modo a tentar contornar o seu descontrolado consumo de drogas, fugiu rapidamente de Los Angeles e instalou-se em Berlim para recuperar.
A cidade alemã viria a possibilitar o início de uma das mais importantes fases da sua carreira. Partilhando casa com Iggy Pop, Bowie esteve envolvido nos dois primeiros esforços a solo do antigo vocalista dos lendários The Stooges, e o seu crescente fascínio pelo trabalho de bandas como os Neu! ou os Kraftwerk influenciou-o a aventurar-se pelo mundo do ambient em Low. Potenciando uma importantíssima colaboração com Brian Eno, e sem esquecer a ajuda do braço-direito Tony Visconti na produção, o álbum iniciou a afamada “Berlin Trilogy”: uma primeira metade composta por memoráveis músicas art pop e uma segunda dominada pelo experimentalismo com a eletrónica culminaram num disco que constituía uma mudança estilística radical para o artista, mudança essa que continuaria em “Heroes” e Lodger.
O último disco desse trio de lançamentos expunha um artista cada vez mais inconvencional nas abordagens criativas por ele incorporadas – desde colocar os seus músicos a tocar instrumentos diferentes daqueles a que estavam habituados, ao uso das famosas “Oblique Strategies”, que foram exploradas com Eno. Scary Monsters (and Super Creeps), no entanto, permitiria que Bowie juntasse à sua criatividade um alcance comercial que o seu antecessor não tinha tido, e que o levou novamente ao mainstream. O músico dava início à década de 80 com uma ressurgência em popularidade, alargando o seu espetro a novos ouvintes.
Esta seria, de resto, a história dos seus anos seguintes. Sucessos como “Let’s Dance” garantiram-lhe presença quase ininterrupta nos charts, tornando o seu som mais acessível a uma audiência de massas e tomando menos riscos. Tal acabou por levar, contudo, a um dos seus períodos musicais menos entusiásticos – com Never Let Me Down, de 1987, a ser ainda frequentemente citado pelos fãs como um dos seus piores trabalhos.
Experiências com o soul (Black Tie White Noise, 1993) e o drum and bass (Earthling, 1997) fizeram parte do seu trabalho nos anos 90, em que, depois de uma fase de pouca inspiração, Bowie pareceu renovar-se em termos de novas ideias. Depois de um longo hiato, o seu regresso em 2013, com The Next Day, teve tanto de inesperado como de intensamente aclamado.
Mais impensável ainda foi Blackstar, de 2016, que, tragicamente, seria o seu swan song. Notavelmente mais pesado e sombrio em termos líricos, este disco lidava com a morte, e o medo de não ter tanto tempo quanto o desejável, de uma forma assumida e com uma clareza que Bowie nunca antes tinha tido, desde a fatídica faixa-título às angustiantes “Lazarus” e “Dollar Days”.
Lançado no seu aniversário, a 8 de Janeiro de 2016, David Bowie faleceu dois dias depois, vítima de cancro do fígado – do qual o público em geral não tinha conhecimento. Foi, até ao fim, um artista nos mais profundos sentidos da palavra; conseguiu, às portas da morte, confrontá-la, acrescentando uma preciosa última peça que compõe o fantástico puzzle com que nos deixou.