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Cultura

PAREDES DE COURA 2018: QUEM É QUE QUERES SER?

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Outro ano, outra edição do Festival Vodafone Paredes de Coura. O campismo alargou, as casas de banho estão com melhores condições, e agora ao longe avista-se uma obra de arte de um grupo de amigos que é a jangada construída para subir e descer o rio ao som de “That’s Amore”.

Coura aumenta para felicidade de uns e desgosto de outros; à conversa com veteranos do festival ouve-se repetidamente “este ano isto está com um espírito diferente”, “venho há dez anos e assisti a comercialização do festival, primeiro era a Heineken o patrocinador, depois uma empresa que ninguém sabia o nome, e depois veio a EDP com as luzinhas e a Vodafone e é o que é agora”.

Mas nem por isso Coura perde o encanto. Com “árvores” de livros digitais espalhados pelo campismo para os festivaleiros poderem fazer download gratuito, as pessoas começam o seu dia no rio a cozinhar, enquanto outras já estão na água antártica, mas sempre dentro do barquinho para não molhar o pezinho.

Os comerciantes da zona de campismo destacam-se pela sua simpatia, e toda a gente parece habitar numa sociedade alienada dentro das quatro paredes de verde que cobrem tendas, toldos, cadeiras, massas com atum e colunas a transmitir demasiados estilos de música para enumerar. A Vodafone, patrocinador oficial, instala power booths pelas zonas de campismo para que todos possam carregar os telemóveis, que se transformam em zonas de after party com techno até às oito da manhã.

Sente-se uma viragem de ventos em Coura, o festival encantador no meio de clareiras que agora torna-se facilmente claustrofóbico para os mais suscetíveis.

Dia 15

O primeiro dia do Festival abriu com Grandfather’s house, oriundos de Braga, veteranos do Paredes, com quem tivemos a oportunidade de falar. “Viemos sempre a subir, desde o jazz na relva, ao secundário, a abrir no palco principal, tem sido incrível”, começa por dizer a vocalista da banda. Com um set de eletro pop e uma dinâmica em palco muito própria, a banda portuguesa tomou pelas suas mãos marcar o tom para o resto de festival, de uma maneira simplista e bem sucedida.

Marlon Williams seguiu, e foi complicado focar a atenção em qualquer outra atividade que não fosse a sua voz incontornável. O público, contudo, aguardava já King Gizzard e permaneceu ameno, com o relógio longe ainda das doze badaladas. Um concerto courense, onde se via o público sentado simplesmente a ser levado pela música blues do kiwi, sem grandes alaridos ou elevações.

Linda Martini ofereceu um concerto coeso como fornecem sempre, mas começa a notar-se a falta de evolução ao vivo da banda, recorrendo sempre ao mesmo layout, set, e pouca interferência cénica. Não desapontaram, mas não se destacaram depois de dois concertos tão próprios e únicos. 

As grandes estrelas da noite foram sem dúvida King Gizzard, aguardado por muitos festivaleiros desde as seis da tarde, e Connan Osiris, o fenómeno português de 2018 – este diz que ainda não está cansado da oferta diversificada de pastelaria que lhe é dada: “Vejo sempre como um ato de carinho. Posso não comer a totalidade do item, mas é sempre um ato de carinho que gosto”. Apesar de estilos muito diferentes, foram estes os artistas que conseguiram trazer a Coura o sentimento que até a meio da noite se dissipava lentamente e elevaram o recinto a outro nível, no palco principal e secundário, respetivamente.

A noite fechou com Nuno Lopes no after, uma escolha inaudita, dado que o DJ costuma fechar o festival, e não a primeira noite, mas que resultou, no seguimento da performance de Osiris.

Dia 16

O segundo dia viu pisar no palco principal X-Wife, Shame, The legendary Tigerman, Fleet Foxes e Jungle. O público salvava as energias para Shame, que, depois de um concerto ameno de X-Wife, arrebentou pelo recinto inteiro como já se previa. Um bom concerto, que viveu às expectativas de quem as tinha.

Mas ninguém esperava o grande triunfo da noite que seria Tigerman, o conimbricense, previamente membro da banda Teddy Boys no anos noventa. Numa simplicidade de “rock… and roll”, Tigerman atirou a guitarra, o corpo e alma para o público, acompanhado por uma banda que segurou o espectáculo incansavelmente. Nem a virgem consegue usar branco tão bem como o Furtado. O músico conhecido pela sua personalidade fez várias piadas em relação aos problemas técnicos – “Já conseguimos meter dois homens na lua, mas não conseguimos pôr dois microfones a funcionar ao mesmo tempo” ou “Eu gosto de dar feedback” – que foram um tópico constante em vários concertos. No concerto de Tigerman é impossível dizer o que brilhou mais, se o safoxone esbatido pelas luzes cénicas se o ego incontornável de Paulo Furtado.

Seguiu-se Fleet Foxes, numa posição injusta de atuarem logo a seguir ao que tinha sido até a data o melhor espectáculo do festival, num concerto sem grande highlights a apontar. Seria díficil superar o que tinha acabado de se ver, e a banda norte-americana não pareceu muito ávida na procura da resolução do problema.

A “pausa” que foi Fleet Foxes funcionou para Jungle, no entanto. Carregados de uma energia muito própria elevaram os ânimos novamente, e por todo o recinto viam-se crianças, adultos e graúdos a baterem pé, incapazes de não o fazer com hits como “Happy Man”. O trabalho cénico carregado de luzes amarelas e laranjas funcionava simbioticamente com a música, proporcionando assim uma experiência visual e sonora tão peculiar que éramos transportados para dentro de nós, rodeados de estranhos, em comunhão.

No palco secundário, os grandes da noite foi o projeto a solo de Michelle Zauner Japanese Breakfast, estreante em Portugal, mas com um grande motim de fãs que se dirigiam a correr para apanhar a americana a atuar, e Surma, a portuguesa da música alternativa, que viu um seguimento surpreendente, apesar de considerar o concerto um serviço ao público (ligeiramente pobre) mais do que outra coisa qualquer.

Dia 17

Dia de Pussy Riot no After Hours, era assim que ecoava o terceiro dia do festival pelo campismo e pelo recinto. O dia de Pussy Riot. Ninguém sabia o que esperar, mas todos estavam entusiasmados com o próprio mistério que circundava a actuação da banda ativista russa.

O dia abriu calmamente com Lucy Dacu e Kevin Morby, sem grande precalços ou highlights. O terceiro dia designava-se como o dia de descanso, as pessoas encontravam-se sossegadas espalhadas pelo recinto a ouvir os concertos, raramente na front line. No entanto, os ventos mudaram com DIIV e um pedido do vocalista para “Make DIIV cool again”, o que não parecia ser difícil com um recinto que tinha renascido para a banda Nova Iorquina de rock alternativo. Uma corda partida no início do concerto não impediu o resto do set de se propagar e ouvir por toda a vila.

Uma das grandes surpresas da noite, DIIV conseguiu encontrar o equilíbrio perfeito entre um concerto casual com bastante interação com o público – que é necessário num Festival como o Paredes de Coura – e um espetáculo que ascendia cada vez mais alto a cada música, acompanhado com imagens em palco que se integravam suavemente com o resto da performance. Os próprios músicos estavam tão ou mais entusiasmados por “abrirem” para o concerto de Slowdive que o próprio público, criando o formigueiro entre os festivaleiros para o que viria. Slowdive foi Slowdive. A banda já com um seguimento que bate os vinte anos ofereceu um concerto bem executado, com um público efusivo por mais, mas que nunca chegou a conseguir o que queria.

Seguiu-se Skepta, uma “estreia” musical no Paredes de Coura como Paulo de Carvalho assim o referiu, que cortou com o ritmo estabelecido para a noite, mas que também encontrou muitos percalços devido a um público juvenil que atirava objetos para o palco, o que obrigou o concerto a parar umas três vezes. A falta de respeito pelo artista demonstrou-se como nunca tinha acontecido, o que não o impediu de rebentar com o palco principal e a abertura de moshes. Skepta tinha muito mais para ser, mas o comportamento irresponsável dos fãs ironicamente fez com que caísse aquém do que poderia ter sido dos maiores concertos desta edição.

No palco secundário, a destacar apenas uma das bandas, que fez parte também da colectânea de concertos secretos que aconteceram ao longo do festival nos mais variados sítios da vila. IMARHAN brilharam tanto numa pedreira a tocar na matiné como no palco secundário. A banda argelina conseguiu transformar o palco secundário num fenómeno, que seria consolidado por Frankie Cosmos e a banda retornada And you will knows us by the trail of dead, com quem tivemos a oportunidade de falar casualmente, e que se mostravam entusiasmados por voltar a um festival tão peculiar e verde como Paredes de Coura.

Chegada a hora de Pussy Riot, que começou o concerto com cerca de quinze minutos de pitchblack no palco com 25 exigências político sociais a serem proferidas num voice over, o público estava preparado. Nunca um público estivera tão preparado. Mas a preparação não chegou. Pussy Riot chegou, com apenas um membro da banda e uma dançarina, para executar uma performance pobre toda em playback que levou a multidão a entreolhar-se com caras confusas. Ninguém sabia o que esperar de Pussy Riot, mas havia expectativas. E foram todas por terra batida, com a poeira característica do festival a assentar para desânimo de muitos.   

Dia 18

O último dia era “o dia dos Arcade Fire”. O recinto estava sobrelotado, e as seis da tarde já havia espera na front line para o último concerto da noite. Todas as bandas foram ofuscadas pela espera. Big thief ainda conseguiu alguma divergência, mas foi apenas Dead Combo com acompanhamento de Michael Lanegan que escapou muito sorrateiramente a esta epidemia. Assistir a um concerto de Dead Combo nunca é um filler de tempo. A energia do baterista irradiava para o público e os solos foram a oportunidade da banda de ultrapassar a condição courense da vigésima sexta edição de “estamos à espera de Arcade Fire”.

O português Silva fez furor, talvez por sorte do lineup estabelecido, mas estrangeiros e portugueses encheram o palco secundário, abandonando Curtis Harding e Big Thief sem grandes preocupações, porque no secundário o som chamava.

Chegava a uma da manhã e o grande momento estava no limiar de rebentar, a frontline estava interdita, não havia maneira de ir e voltar. E as pessoas ficavam. Arcade Fire cobriu Paredes de Coura inteira e quase chegou a Braga. Num espectáculo de luzes, coreografia, e interação com o público, a arcádia ardeu como um fogo que nunca se vira, que vem de dentro para fora, e está por todos os lados a propagar-se, e não há controlo. Acho que ninguém se lembrava que deveria ser Bjork ali, naquele momento. Era irrelevante, o público saltava e cantava com a banda. E tudo o que o público dava, Arcade Fire dava de volta. Uma parceria inigualável para a banda de Everything Now. Foi de facto tudo agora. Fizeram o seu regresso depois de aparecerm como uma banda secundária no Festival na edição de 2004. E que regresso que foi. Não houve um momento morto e como Régine Chassange conseguiu chegar à bancada de som no meio do público prevalece um mistério. Uma perfomance para a memória de muitos festivaleiros, da qual David Bowie se orgulharia.

Terminado Arcade Fire só faltava bailar, e a bailar se foi para os afters com Ermo, Ninus du Brasil e, no final, DJ Kitten. A destacar Ninus do Brasil, que levaram tanto quanto podiam para pôr o público a saltar e em moshes que já não pareciam interditos a um círculo, mas ao espaço do palco secundário inteiro.

E assim demos por terminada a 26º edição do Paredes de Coura, com um cartaz caótico, com chuva e calor, com menos poeira e mais acessos, com espaço para todos serem quem quiserem. Mas sempre com o mesmo espírito de Coura.

https://www.youtube.com/watch?v=guj4-tF26zg

O texto deste artigo é da autoria de Mariana Amado.