Cultura
ROBERT MAPPLETHORPE: IDENTIDADE DESAFIANTE
Em 1963, Robert Mapplethorpe começa os seus estudos de pintura e escultura no Pratt Institute, em Brooklyn – a sua intenção original não era ser fotógrafo, apesar de ter sido a fotografia que o popularizou. Aliás, Mapplethorpe começou por fazer colagens, obras essas que iniciam a exposição (“Robert Mapplethorpe: Pictures” é, na sua maior parte, uma instalação cronológica), e nas quais já é evidente o interesse pelo corpo e pela exploração da sexualidade – o artista utilizou recortes de revistas de cariz erótico homossexual.
Nascido em 1946,em Nova Iorque, no seio de uma família tradicional, de classe média, sendo o terceiro de seis filhos, Robert Mapplethorpe foi um dos artistas mais polémicos do século XX, por ter desafiado barreiras e fotografado o que via tal como era.
Passou a sua vida a tentar encontrar a perfeição, fotografando os mais variados sujeitos fotográficos: ele mesmo, participantes da cultura nova-iorquina dos anos 70 e 80, amigos seus e celebridades reputadas, aristocratas, crianças, prédios, flores, gatos e até taças de café, que tinham apenas uma coisa em comum: o controlo quase cirúrgico das formas, das sombras e da iluminação.
Entre os vários amigos e celebridades retratados nesta instalação, onde podemos ver Iggy Pop, Susan Sarandon, Arnold Schwarzenegger, Grace Jones, Louise Bourgeois e Andy Warhol, é, sem dúvida, Patti Smith quem mais se destaca. A cantora punk é o sujeito fotográfico que mais vezes aparece e a única que aparece em formato vídeo, na exposição, no filme “Still Moving/Patti Smith”. Não é de admirar, tendo em conta não só a sua importância para a cultura punk, mas também a intensa relação que os dois artistas viveram e que deu vida ao livro de 2010 “Just Kids (Apenas Miúdos)”, em que Smith fala dos tempos que passaram juntos na conturbada Nova Iorque dos anos 70 e da ascensão individual e do casal à fama.
Segundo Patti Smith e também o próprio, Mapplethorpe não queria apenas retratar o que via, mas também vivê-lo. O fotógrafo dizia que havia uma “performance entre ele e o sujeito fotografado” e isso é evidente ao longo de toda a sua obra, mas mais ainda quando chegamos às salas “proibidas”, em que o próprio artista aparece representado numa das obras, num auto-retrato que foi censurado em vários países e que mostra até que ponto se envolvia com o que fazia.
Antes de entrar nas salas com fotografia de temática erótica, sexual, sado-masoquista e pertencentes à cultura leather do sub-mundo nova-iorquino dos anos 70 e 80, temos um aviso de que essas duas salas, com aproximadamente duas dezenas de obras, são de acesso reservado a maiores de 18 anos ou a menores acompanhados e/ou autorizados por adultos.
As opiniões dividem-se quanto a esta reserva: para uns, entre os quais a própria Fundação de Serralves, faz todo o sentido que assim seja, dado o carácter “sexualmente explícito” de obras expostas nessas duas salas. Para outros, como a Associação Portuguesa de Museologia (APOM), um museu é um lugar público e livre, e, por esse motivo, não faz sentido existir esta forma de “censura”.
Através dos sujeitos que escolheu fotografar, Mapplethorpe não quebrou apenas barreiras sexuais ou de orientação sexual: quebrou barreiras corporais e de etnia, ao fotografar vários tipos de corpos e muitos corpos negros, que eram, até então, sub-representados em fotografia e também barreiras de identidade de género, ao aparecer maquilhado em vários auto-retratos e ao fotografar várias vezes a sua amiga Lisa Lyon, precursora do bodybuilding, numa incessante busca pela perfeição, que passava pela procura, pelo respeito e pela valorização do outro.
A última obra da instalação é um auto-retrato, datado de 1988, de quando o artista tinha já a certeza de que iria morrer brevemente, diagnosticado com SIDA – na altura, uma sentença de morte. Sabendo a história que está por detrás desta fotografia, em que só se vê, praticamente, a cabeça de Robert Mapplethorpe e, ao seu lado, uma caveira (o topo da sua bengala), esta ganha outra dimensão e significado. Entristece-nos e recorda-nos da finitude do ser humano e de que mesmo as luzes mais brilhantes se apagam, por vezes até, muito cedo e de forma trágica, como no caso de Mapplethorpe.
Este auto-retrato encerra não só a instalação mas também um corredor simbólico, em que uma das peças é uma cruz (para além das fotografias e colagens, o artista também se dedicou à escultura), feita de alcatifa branca.
Esta peça representa a fação católica e mesmo espiritual de Mapplethorpe, que, numa entrevista à Vanity Fair feita pelo célebre jornalista Dominick Dunne, revelou que gostava de ter frequentado o colégio católico onde os seus irmãos andaram. Este seu lado surpreende muitos, face às suas obras temáticas polémicas, mas mostra muito do que Robert Mapplethorpe era – alguém que vivia e explorava a vida, a forma humana e tudo o que o rodeava, de todas as maneiras e em todas as suas conceções.
Mapplethorpe desafiava qualquer tipo de identidade e caixa onde o quisessem inserir, como é demonstrado nesta instalação e ao longo de toda a sua vida. Trinta anos após a sua morte, mostrou ser tão polémico hoje como quando vivo.
A instalação da sua obra no Museu de Arte Contemporânea de Serralves – a sua primeira estadia em Portugal – fez correr muita tinta, tendo sido das obras mais polémicas que por lá passaram, se não mesmo, talvez, a mais polémica. Foi no âmbito de tudo isto que o JUP conversou com Paula Fernandes, curadora e coordenadora de “Robert Mapplethorpe: Pictures”:
Como avalia a estadia da exposição em Serralves quanto à adesão?
A exposição tem tido muitos visitantes. É uma oportunidade muito importante de vermos obras deste artista, que é considerado um ícone mundial na arte da fotografia. Ter possibilidade de ver estas impressões, que têm uma magia incrível aqui, em Serralves, é, de facto, uma grande oportunidade. Acho que, nessa perspetiva, é uma oportunidade única vermos obras de Mapplethorpe assim, originais, sem ser em revistas ou em catálogos, que é a forma como a maior parte das pessoas vê as fotografias deste artista.
Tendo em conta a polémica que a exposição espoletou, pensa que as coisas teriam sido feitas de maneira diferente agora?
A exposição estava planeada e definida. Tudo estava salvaguardado e tudo tinha sido já acautelado. O que nós apresentamos aqui é uma viagem pelo universo deste artista e, portanto, há uma parte mais negra – alguns portfólios que ele fez, mais específicos, que ele fez durante um ano-, digamos assim, porque ele tinha uma duplicidade de personalidade.
Sentiu, trabalhando em Serralves, alguma pressão decorrente da exposição ou acha que Portugal já está preparado para exposições destas? O próprio Mapplethorpe sabia que não era consensual, que não iria agradar a toda a gente.
Portugal está preparado para exposições destas. Esta polémica já surgiu nos anos 80, já várias instituições passaram por polémicas deste género. O nu na história da arte é recorrente e Mapplethorpe é um artista estudioso e conhecedor do classicismo e, portanto, da representação da figura humana, principalmente masculina e de corpos negros – porque ele estava à procura da perfeição, da perfeição do corpo, de encontrar o corpo perfeito- e tanto fotografou, que talvez tenha conseguido encontrar esse corpo perfeito.
Como ele era um conhecedor, um estudioso, acho que temos que ter isso em consideração; temos que perceber qual é o contexto e qual é a posição deste artista e Portugal tem que estar preparado para ver uma exposição em que a beleza é o último reduto daquilo que o artista quer fotografar e várias vezes ele diz: “eu fotografo os corpos, como fotografo as flores, como partes dos corpos”. Para ele é igual, ele prepara igualmente a fotografia de qualquer parte do corpo ou das flores…
Acha que a obra de Mapplethorpe tem conseguido vir a demarcar-se do estigma e da discriminação que sofreu enquanto vivia?
É difícil, porque se estas polémicas acontecem é porque ainda existem alguns desses preconceitos ou estigmas na cabeça das pessoas. Ele sabia que era polémico, tanto que ele assumia essa duplicidade de carácter. Ele era o diabo e era ao mesmo tempo o anjo e nas suas obras nós conseguimos detetar isso, logo, as reações que as pessoas têm ao ver a obra dele poderão ser essas.
Tem a ver muito com como se faz a leitura da obra, como se faz a interpretação da obra dele e aos olhos de quê – se quiser ter olhos de uma pessoa maldosa, também vejo maldade em tudo o que é sítio. Se quiser ver apenas a beleza, as sombras e as formas também vejo. Mas que as fotografias dizem alguma coisa, transmitem alguma coisa, transmitem.
Teve algum feedback dos visitantes? O que é que as pessoas acharam da exposição?
Eu não sei as reações das pessoas, não converso com elas, mas há de tudo. Há pessoas que adoram e que acham que a exposição está maravilhosa. Tenho tido feedback de algumas pessoas que vieram especificamente para a inauguração , [como] curadores que já trabalharam com a obra de Mapplethorpe e que acharam que esta instalação estava magnífica – e, portanto, há pessoas que gostam, há pessoas que não suportam e isso é fácil de ver em algunss comentários que uma pessoa lê sobre a exposição, mas aqui é um lugar para realmente pensar e para abrir ideias. É um lugar de pensamento, de crítica, de posicionamento e o Museu tem esse papel.
Então, chegando agora ao fim da exposição, o balanço é muito positivo?
Sim, sim, é muito positivo e foi uma oportunidade única de colaborar com a fundação que o próprio artista criou. As obras vieram todas de lá, foi tudo cedido pela Fundação Mapplethorpe, portanto acho que é uma oportunidade muito boa de vermos aqui, com esta importância, uma grande quantidade de obras expostas.