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Cultura

99 ANOS DO TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO: DAS CINZAS AO RENASCIMENTO

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Durante o dia, painéis espalhados pela cidade davam uma amostra do que seria a celebração à noite, no interior do Teatro Nacional São João (TNSJ). Podia ver-se, num vídeo, uma contagem regressiva culminando no número do centenário, a ser completado daqui a um ano.

Ao chegar ao teatro, palco de inúmeras histórias que criaram e criam enlaces de afeto com os cidadãos portuenses, já se percebia a euforia do público. O salão estava lotado, com pessoas saindo às portas e muitos sussurros seguidos de olhares curiosos. Via-se a afeição daqueles que “partilham esta casa como causa”, como dito em um dos discursos emocionados que regaram o teatro com aplausos e nostalgia no início da comemoração.

A celebração foi concisa em relembrar o tempo passado – muito bem passado na companhia de espectadores e histórias de vida, de proximidade, como quem vai ali tomar um café e esbarra em mais uma narrativa de intimidade com o teatro no âmago do Porto –, e incisiva em uma espécie de ensaio chamado de “ponto de ordem”, em que foram descritas dez ideias; desejos, projetos e até mesmo uma autoavaliação expondo problemas a serem solucionados, como a necessidade de uma intervenção de conservação e manutenção generalizada – os meios técnicos do teatro foram descritos como encontrando-se “desatualizados, no limiar da obsolescência”. Relembrando os anos passados mas olhando para o futuro, querem assim preparar um “teatro de elite para todos”, com projetos já bem definidos para 2020, o ano do centenário.

Os teatros ardem a partir do palco, e para acompanhar o ensaio das “Dez ideias para (mais) dez anos de Teatro Nacional São João”, foram exibidas dez fotografias ao público. Na primeira fotografia, foi relembrado o incêndio de 1908 que deixou o Real Theatro de São João, inaugurado em 1798 e projetado por Vincenzo Mazzoneschi, em ruínas. O Teatro de São João de Marques da Silva, que leva o nome de um dos mais notáveis arquitetos portuenses e responsável por seu projeto em 1920, ergue-se sobre os escombros desse São João primitivo, e é dele “sucessor e continuador”, como disse Luís Soares Carneiro, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto – que, em um trabalho ilustrado, analisou a história do teatro.

Outras fotografias envolviam antigos funcionários carinhosamente relembrados, como o Sr.Pêra; o anseio de uma “companhia quase residente” com um núcleo de atores contratados anualmente; encenadores “revelados” ao mundo à luz do São João; e o latente desejo de reinvestir na internacionalização, promovendo novas relações externas, principalmente com os países de língua portuguesa, assumindo o teatro como uma “reserva ecológica da língua”. Até mesmo os tempos do “São João Cine” e dos manuais de leitura, inventados em 2003, que tanto acrescentam aos espectadores ao oferecerem textos referenciais e provocarem uma reflexão acerca dos autores e obras, foram relembrados. Anunciou-se ainda o lançamento de uma nova coleção de livros nos âmbitos do ensaio, da biografia e das memórias, e aludiu-se aos “cadernos do centenário”, um conjunto de publicações temáticas em torno do número 100.

Junto com o ensaio em forma de caderninho, também foi entregue aos espectadores um lápis – dourado, como os ornamentos arquitetônicos do São João -, incentivando seu uso para novos projetos, aspirações e ideias que possam surgir no decurso deste ano rumo ao centenário. Ao final da exibição, Nuno Cardoso discursou pela primeira vez como Diretor Artístico do TNSJ.

Como as chamas que levaram o São João ao chão, também se propagaram pelo teatro os aplausos ao final dos discursos, oriundos de espectadores diversos, que permeavam desde importantes e bem vestidos membros da sociedade portuense a jovens apaixonados pela arte e idosos, provavelmente frequentadores do teatro em suas mocidades, que se emocionavam a cada palavra dita e relembrada. Esta foi também uma celebração inclusiva, ao contar com uma tradutora em linguagem de sinais posicionada na lateral do palco durante todo o vídeo e discursos.

Como dito no palco, a um ano de se tornar centenário, o Teatro Nacional São João está, afinal, prestes a nascer.

Para continuar a celebração, os espectadores foram chamados a uma visita guiada às entranhas do edifício, “Das tripas, coração”. Conduzida por atores, a plateia foi divida de acordo com frases escritas em um papel anexado aos seus bilhetes, as quais personagens devidamente caracterizadas aclamavam aos cantos do teatro e agrupavam as pessoas curiosas para o que viria a seguir. Sete locais aos quais um espectador normalmente não teria acesso foram descerrados, cada um com um trecho de uma obra teatral que remetia à memória cénica do TNSJ.

Começamos passando por escadarias e estreitos corredores, chegando ao fosso do teatro. O grupo é comprimido em um pequeno espaço e assiste a encenação de Ir e Vir, de Samuel Beckett. Vamos três mulheres em um banco, cochichando e envolvendo um passado não-explícito com segredos compartilhados e ocultos entre si, roupas iguais com cores distintas, chapéus que cobrem seus olhos e escondem suas faces. O silêncio também é ator nessa obra.

Em seguida, mais caminhos são descobertos, que agora levam ao camarim coletivo, com algumas cadeiras para o público. São vistas pelos reflexos dos espelhos as expressões de sofrimento de Inês de Castro e a postura de D. Afonso no trecho de Castro, a primeira tragédia clássica portuguesa, de António Ferreira. O desenho de luz é preciso e transparece a imagem dos atores com sentimento.

A terceira área descoberta foi no topo do teatro, após vários lances de escada que não pareciam acabar. Chegamos à varanda – não recomendada àqueles com medo de altura -, na qual passamos por uma estreita passarela e observamos inúmeros cabos, sustentações de cenários e iluminação, com o palco abaixo. Lá um excerto de Alma, de Gil Vicente, foi encenado, e a atriz, Maria Leite, desfilava lado a lado com os espectadores.

Fotografia: Giulia Pedrosa.

Fotografia: Giulia Pedrosa.

Seguidamente, vamos ao terceiro balcão, sentamos nas cadeiras como típicos espectadores e vemos Shakespeare flutuar no teatro com um fragmento de A Tempestade. A paixão pura de Miranda e Fernando arrancam sorrisos e encantamento do público, com a euforia da donzela e galanteios do rapaz.

Nas escadas de serviços, somos colocados contra as paredes, literalmente, para assistir uma passagem de Gretchen, de Goethe, em que vimos Rafaela Sá vestida de bailarina interpretar a triste Margarida.

No bar, à meia-luz, sentamos todos para apreciar o diálogo entre Treplev e Nina, em um excerto de A Gaivota, do russo Anton Tchékov, que foi originalmente concebida como uma comédia pelo autor, mas é frequentemente interpretada como uma tragédia. Os espelhos também têm papéis interessantes no cenário, e revelam não só os atores como também os espectadores e suas faces intrigadas com o enredo.

Por fim, após o cortejo às descerradas entranhas do São João, o público retorna ao seu coração, o palco. Lá temos o grand finale com um extrato de O Resto Já Devem Conhecer do Cinema, de Martin Crimp, com um coro de atores. E encerra com uma adaptação de Noite de Reis, de Shakespeare, uma grande festa com todos os atores no palco. Palmas calorosas são seguidas do anúncio de que “o espetáculo acabou”.

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