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MILO RAU E A SUA ETERNIDADE DE SODOMA

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Número 1: Não vamos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

Número 2: Não conseguimos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

E, número 3: Não devemos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

Em 1785, Marquês de Sade – um senhor com um requintado nome de aristocrata mas, de facto, a origem do termo «sadismo» – escreveu Os 120 Dias de Sodoma. Quase dois séculos mais tarde, na década de 70, naquele que foi o seu último filme, Pier Paolo Pasolini recriou esta história cruel e mórbida que, até hoje, é das mais polémicas obras cinematográficas de sempre. Milo Rau, encenador suíço, na sua plena convicção e estética artística, adaptou a ideia ao teatro, modernizou-a, e lotou o Grande Auditório do Rivoli nas duas últimas noites.

Milo, sendo Rau, é unanimemente bestial. Para alguns, “bestial” porque é uma grandessíssima besta, desenvergonhado, que desconhece os limites da arte. Para outros, “bestial” porque, com devido fundamento, é considerado o mais controverso encenador da atualidade. Depois de Five Easy Pieces, peça protagonizada por um elenco de crianças que retratavam os crimes que o pedófilo Marc Dutroux cometeu nos anos 90, Os 120 Dias de Sodoma, interpretada pela Theater Hora, senta-nos a observar, impotentes, uma elite de homens ricos que dirigem uma experiência de 120 dias de tortura a um grupo de jovens – primeiro, satisfazem as suas necessidades sexuais; de seguida, obrigam-nos a alimentar-se das suas fezes; e, por fim, punem-nos com mutilações, assassinam-nos, e até crucificam um deles.

São duas horas perversas, arrepiantes, absolutamente impróprias para os mais púdicos, e podem ser enjoativas. Talvez, por isso, houve público a decidir abandonar a peça a meio. Talvez achem que Milo Rau “abusou”. Será que abusou?

Milo Rau fez questão que todos os jovens atores fossem portadores de trissomia 21. Mas será que abusou por encenar uma tortura coletiva a um grupo que, inevitavelmente, tem uma feição facial e corporal característica da anomalia genética? Ou será que abusou por integrar nudez, sexo – sozinho e acompanhado – e tema tabu a ser dissecado atrás de tema tabu? Milo Rau abusou, por quê?

Aqueles que aplaudiram ininterruptamente no fim creio que entenderam que Milo Rau não abusou. No fundo, “a Arte é sempre um abuso. A arte vai sempre longe demais» – diz, inclusive, um dos jovens em cena. Não, Milo Rau não abusou. Porque não era objetivo sentir pena dos atores pela doença, ou compaixão pelas personagens por serem doentes. Era, sim, objetivo enxergar que o poder, as relações, a fragilidade do corpo humano, a violência, os assuntos que nos partem ao meio – como a falta de dignidade, o hedonismo, a desgraça e a anormalidade – também precisam de ser abordados, porque são o mundo que temos. E o teatro é o palco indicado para tudo.

Portanto:

Número 1: Não vamos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

Número 2: Não conseguimos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

E número 3: Não devemos esquecer-nos d’ “Os 120 Dias de Sodoma”.

Estamos confusos, perplexos, e ainda bem. Não conseguimos deixar de nos interrogar se o argumento terá, tal como parece, referências verídicas, altamente íntimas e pessoais. E também não entendemos se Milo Rau encenou uma tortura, baseada nas versões de Sade e Pasolini; ou se encenou uma encenação de uma tortura, ou seja, a história de um grupo que, com muita teatrice, quer recriar Sade e Pasolini. Não sei. Seja como for, não interessa. Que venha o próximo deste homem sem papas na arte.

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