Cultura
NA BAHIA, A DANÇA É “OUTRA MANEIRA DE A GENTE ESTAR JUNTOS”
Um festival “é sempre um lugar de agrupar pessoas e levantar questões”. Quem o diz é Marcelo Evelin; o coreógrafo nascido no Piauí, no nordeste do Brasil, está no Porto para apresentar A Invenção da Maldade, um trabalho inserido na programação dos Dias da Dança (DDD). Este ano, o festival de artes performativas, que está a celebrar a sua quarta edição – e que pela primeira vez se juntou ao Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) – tem um Foco Brasil, onde artistas e público poderão refletir sobre várias das preocupações que marcam o atual momento político e cultural do país.
É nesse campo de pensamento crítico que entra a equipa responsável por Looping: Bahia Overdub. A obra encabeçada por Felipe de Assis, apresentada no Teatro Municipal Rivoli a 24 de abril, é uma que, como se pode ler na página oficial do DDD, anda à volta de “festa, dança e política”. O artista natural de Salvador refere que o espetáculo, cuja data de criação remonta a 2015, inspira-se nas festas de largo, “celebrações sagrado-profanas” muito famosas que fazem parte da tradição da cidade que o viu nascer. As festas de largo, avança o diretor artístico, “permitem-nos observar, de maneira privilegiada, as nossas contradições”.
O Brasil é, para o conjunto de intérpretes que criou Looping: Bahia Overdub, indiscutivelmente cheio de contradições. Felipe de Assis considera que os fantasmas da escravidão não permitem que a história do país se pinte sem os tons da desigualdade, mas “ainda assim o povo brasileiro busca maneiras singulares de se reinventar”.
Perante esses tons da desigualdade, o que Looping: Bahia Overdub propõe é um encontro e uma celebração da diferença. Leonardo França, que assina com Felipe de Assis e Rita Aquino a direção do espetáculo, assinala que “estamos ali com as nossas diferenças, mas, ao mesmo tempo, se movendo juntos no espaço”.
https://www.youtube.com/watch?v=fScTaO8jP_c
Rita Aquino lembra que foi quando Felipe de Assis comprou um pequeno equipamento electrónico percussivo que “a ideia de pensar na repetição e na acumulação como possibilidades de dispositivos para refletir sobre a cultura” surgiu. As palavras loop – que corresponde à repetição de um som gravado – e overdub – que corresponde à “possibilidade de você adicionar novas camadas por cima do som que gravou” – traduzem-se num pensamento sobre aquilo “que se vai transformando” na cultura brasileira “a partir da acumulação de novas informações”.
Segundo a visão de Rita Aquino, o espetáculo propõe “uma experiência de corpo coletivo”. Fiel às festas de largo que serviram de mote para a criação artística, Looping: Bahia Overdub prefere distanciar-se dos cânones tradicionais de apresentação dentro do universo das artes performativas; a plateia é convidada a ficar em pé, e, por sua vez, os corpos são convidados a interagir uns com os outros.
Leonardo França sublinha que, uma vez derrubadas as barreiras entre os artistas e o público, a dança só pode acontecer coletivamente, garantindo que “ela precisa do engajamento de toda a audiência para que aconteça na sua força”. Para o co-criador, “há um elemento político na relação corpo-a-corpo”, e “é através da proximidade e da distância entre os corpos que se detonam os tabus da nossa sociedade”, desde os que se relacionam com questões de racismo aos que têm a ver com a desigualdade de classes no Brasil.
A decisão de quebrar com os convencionalismos e colocar a plateia em pé, num momento de plena comunhão com os intérpretes, foi “totalmente intencional” por parte de Felipe de Assis. O diretor artístico refere que, por norma, o que acontece é que “a gente se protege nas nossas cadeiras, com uma certa distância daquilo que nos é apresentado”, e o desvio que Looping: Bahia Overdub sugere potencia “outras maneiras de a gente estar juntos”.
Conforme acrescenta Rita Aquino, os intérpretes são “catalisadores de uma experiência” e criadores de “uma pequena comunidade temporária”, aproximando os corpos presentes no espaço para se reconhecerem as diferenças e as assimetrias, tão presentes “na nossa sociedade tão desigual, tão díspar”. Existe na formação dessa comunidade uma possibilidade de “caminhar lado a lado”, de “transpor essas barreiras de racismo, homofobia, machismo”.
Aquilo que se forma, completa Leonardo França, é sobretudo um espaço para se pensar politicamente. “Se você festeja, ao mesmo tempo você toma posições”, sublinha o artista, para quem é essencial tirar a política dos “gabinetes e instituições” e imprimir-lhe uma natureza “humana e calorosa”.
Pensar politicamente sempre se manifestou como uma necessidade para Felipe de Assis e a sua equipa. O diretor artístico explica que o Brasil está a passar por um momento “efervescente e bastante crítico”, e assusta-se com o facto de se querer caminhar para “um tipo de ideia de homogeneização”. Leonardo França esclarece que “há bastante alegria quando se misturam as pessoas, as classes, as cores e os géneros, mas há também muita violência”.
A intérprete-criadora Rita Aquino não deixa de notar que em 2015, quando Looping: Bahia Overdub foi apresentado pela primeira vez, o cenário político que se vivia no Brasil era muito diferente daquele que se verifica atualmente. O espetáculo começou por ter “uma temperatura, uma cor, uma cara”, e depois precisou de dialogar com as transformações sociais entretanto vividas pelo país. “A gente foi atravessando o golpe e o governo que se instaurou a partir da saída da Dilma Rousseff”, e agora outras camadas de discussão fazem parte do trabalho. O projeto torna-se, então, atual “porque a cada momento a gente está enfrentando novos desafios nesse cenário político”.
O que os intérpretes em Looping: Bahia Overdub procuram fazer é, garante Rita Aquino, apostar no corpo, no encontro entre as pessoas e nas relações interpessoais como “fagulhas possíveis de transformação”. O que se encontra nas festas de largo é uma possibilidade de afirmação da cultura, “um modo de celebrar a vida”. Para tal, apela-se a que as diferenças sejam abraçadas. Marcelo Evelin, que marcou presença no brunch de apresentação à imprensa do DDD, realçou ao JUP a necessidade se usarem as diferenças como “motor propulsor”. Para o coreógrafo, “tem uma importância muito grande a gente não perder a alegria, não perder a possibilidade que a gente tem de dançar, de festejar, de estar juntos com alegria”. É por essa alegria que Looping: Bahia Overdub grita.
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