Cultura
A D-D-DANÇAR NA MARGEM
Antes da porta do Grande Auditório do Rivoli se abrir, as pessoas ainda não sabem que vão ficar na margem de ter uma crise existencial. Sabem apenas que o texto foi escrito por Joana Craveiro e que a direção ficou a cargo de Victor Hugo Pontes – talvez o mais criativo coreógrafo em Portugal. Sabem também, talvez, que o espetáculo correu o país de Norte a Sul no último ano. E, “só” por isto, reúne, desde logo, todos os pré-requisitos para estar no centro da Semana +, o cruzamento da programação dos Dias da Dança (DDD) e do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI). Ainda assim, só no final do espetáculo, com o auditório lotado a aplaudir – ainda sem saber muito bem o que viu – os doze jovens que humanizaram mil vidas, é que nos deixamos cair na margem da nossa pequenez.
No universo das artes performativas e plásticas, há um conceito sagrado, que se denomina por “foco”. Esse conceito consiste no espaço-seio da ação, o ponto para o qual os olhos tendem a olhar, inevitavelmente. Mas Margem, de forma quase inexplicável, em nenhum momento tem foco. O público deseja ter mais olhos, mais ouvidos, mais sentidos, e quer captar cada detalhe minucioso desde que entra na sala e se depara, num palco que virou “trapiche”, com aquela multidão e confusão que corre, conversa, joga à bola, dança e é feliz ao som de uma batida contagiante que os faz sobreviver.
Entre colchões e sob o nevoeiro, doze jovens aproximam-se da boca de cena, com o livro Capitães da Areia na mão. Citam umas passagens e vivem outras páginas, porque a história de 1937 é, sabe-se lá como, ridiculamente atual. Durante aquele par de minutos (que, segundo a folha de sala, foi, afinal, uma hora e meia) deambula-se entre a ficção e a realidade. Salta-se entre um livro, uma criação e mil vidas mundanas. Fundem-se as pessoas, os atores, e as personagens. Tão depressa recordamos a arte de Jorge Amado como recordamos a nossa vida, como desvendamos a vida deles ou entramos nas cabeças irrequietas de jovens que foram privados da normalidade e atirados para a criminalidade e excessiva responsabilidade, quando ainda nem tinham palmos suficientes.
Estes, os nossos novos Capitães da Areia – que continuam na margem de tudo e todos – desconstroem o conceito de família, inventam a palavra amor, experimentam o medo, a dor, a intimidade, a liberdade, a vontade de ser o seu próprio herói. E dançam, dançam porque podem, porque querem, porque o raio das “palavras não expressam tudo”. E, às vezes, minutos inteiros pareciam puro improviso e selvajaria, mas nunca o eram, de tão intensos e harmónicos que acabavam por ser.
Algures quase a cair na margem, entendemos que não há margem entre a dança e o teatro. Não há margem entre uma personagem e uma pessoa. Não há margem entre esta vida e a próxima. (Porque não há próxima. Ou porque não há margem). Não há margem de espera entre este pedido de alerta e a revolução. “Ouviram? Perceberam? É que não vamos explicar outra vez”. E, dito isto, a ecoar nos nossos olhos, apaga-se a luz.