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IVO CANELAS E AS COISAS MARAVILHOSAS DE QUE NÃO NOS APERCEBEMOS

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Foi na noite de segunda-feira que o Porto recebeu pela primeira vez “Todas as Coisas Maravilhosas”, um monólogo de Duncan Macmillan interpretado pelo ator Ivo Canelas. Uma sala com cadeiras em círculo, despojada de qualquer outra coisa, antecipou o momento íntimo que viria. Indicação houvesse que preparasse para o que ia acontecer na seguinte hora e meia e, mesmo assim, ninguém estaria verdadeiramente pronto.

Ivo Canelas. Fotografia: Inês Loureiro Pinto

Em linhas gerais, que não fazem jus ao seu todo, a peça fala de uma lista que um menino de 7 anos escreve para a mãe com “todas as coisas maravilhosas” de que se vai lembrando, numa altura em que a mãe enfrenta uma difícil depressão.  À medida que a sala foi enchendo, Ivo Canelas foi distribuindo papéis numerados pela plateia: 1. Gelados; 2. Guerras com Água; 3. Poder ficar a ver televisão à noite depois da hora de ir para a cama; e por aí em diante. Isto porque a peça é uma interação constante com o público.

Em conversa com o JUP, o ator confessa que lidar com a imprevisibilidade da audiência tem tanto de fantástico como de natural e que “é como uma conversa: eu não sei o que é que me vais perguntar, tu não sabes o que é que eu vou responder e vamo-nos ouvindo até chegarmos ao sítio do nosso entendimento”. Ivo Canelas afirma ainda que há apenas um pressuposto para que este diálogo corra bem e sem constrangimentos: “não há certos nem errados e, portanto, se confiarmos que não há nada que se possa fazer ou dizer mal e que estamos todos de coração aberto, não há nada que possamos fazer de errado”.

Para Ivo, a forma como o público portuense iria reagir ao espetáculo era uma incógnita. Acredita que, “aqui para cima, há uma carga mais pesada e mais conservadora”. Por isso, há uma tendência para um bocadinho mais de dureza e “um muro mais grosso e mais alto” no que toca a demonstrar emoções. “Isto é muito generalista e tem que ser interpretado como tal”, ressalva. No entanto, a beleza deste desafio surge no momento em que o ator consegue alcançar o lado mais profundo e genuíno daqueles que o estão a ver e “quando esse muro desmorona, o barulho é muito maior”.

É de forma atenta que todos acompanham o espetáculo (seja só a observar seja mesmo a fazer parte dele). O texto, incrivelmente visual e feito de arquétipos, cria um ambiente de harmonia entre todos os que sentam naquele círculo, quase como se de uma terapia se tratasse. Ivo Canelas diz que a forma de perceber que a mensagem está a ser transmitida é através do olhar dos que o observam. “Os olhos são muito claros”, acrescenta. Diz que nem sempre se encontra com olhares felizes, coisa que, ao início, o perturbava. No entanto, tem aprendido com a peça que estar triste “não faz mal”.

“Nós achamos sempre que não podemos estar tristes e a verdade é que quanto mais cresço mais percebo que estar triste é tão natural quanto estar contente. Tenho aceite a tristeza que vejo em muitas pessoas como natural durante os espetáculos e penso espera lá, agora estás triste mas dá-me dez minutos que a gente já chega a um sítio onde vais sorrir!”

De facto, “Todas as Coisas Maravilhosas” é uma obra acessível e próxima de cada um de nós. A passagem do tempo, as fases da vida, os ups and downs, as relações, a presença da música e a noção de que tudo passa são temas tratados de uma forma fascinante. “Não interessa de que cor, espírito, país… Toca-nos a todos! Isso permite que as pessoas se aproximem muito deste universo”, diz o ator.

Ivo confessa que não tem sido fácil cortar os fios que o ligam ao personagem porque “há uma espécie de continuidade, ou não separação, da realidade com a da peça”. A experiência em palco, que descreve como intensa, tem para si um efeito catártico (“custa-me a adormecer a seguir, até às três da manhã não vou dormir”, diz, em risos). No entanto, confessa também que isso se deve muito ao facto de o tema tratado ultrapassar as portas das salas de espetáculos.

Na verdade, “Todas as Coisas Maravilhosas” não aborda apenas coisas maravilhosas. Como pano de fundo de tudo o que se vai desenrolando estão a depressão e o suicídio, questões que nos são “muito próximas e que pairam sobre as nossas cabeças”, diz o ator. Sensibilizado para a seriedade do assunto, afirma que ganhou uma maior consciência da proximidade do suicídio quando começou a receber testemunhos de quem o ia ver. “Eu chegava a casa à noite depois dos espetáculos de Lisboa e tinha sempre quatro ou cinco mensagens com histórias do género. É importante pensarmos e falarmos sobre isto porque é muito violento para quem fica destas experiências não falar sobre isso. É um assunto muito complexo”, afirma.

No entanto, ao longo desta tal montanha russa, o sentimento geral é comum. A vida é feita de muitas coisas maravilhosas das quais, por vezes, não nos apercebemos, tal como dias de sol, diz Ivo Canelas: “tantas vezes tens um dia de sol em que não fizeste nada de jeito e depois vem um dia cinzento e pensas ‘que desperdício que foi ontem, agora é que estou a perceber’ – aí já é tarde”.

Quando questionado acerca das “coisas maravilhosas” que não faltam na sua lista, Ivo Canelas não tem dúvidas. “São coisas muito simples, sabes? Um pé descalço num pedacinho de relvinha ao sol com o resto do corpo ainda à sombra, os dentes da minha sobrinha bebé (risos)! Às vezes até mesmo sentar-me e simplesmente respirar”, diz. “Se calhar daqui a bocado já não vamos poder”, afirma. “É aproveitar enquanto cá estamos.”

“Todas as Coisas Maravilhosas” está em cena na sala 1 do Hard Club de 20 a 22 e de 24 a 27 de maio.

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