Cultura
O MONÓLOGO DE NARRATIVAS INCOMPLETAS
Nos últimos quatro dias, o Teatro Carlos Alberto provou que nem todo o teatro é para toda a gente mas, ainda assim, não ofendido, consegue ser sobre toda a gente. João Sousa Cardoso – um artista que não se preocupa ou incomoda se o público está a conseguir acompanhar o seu raciocínio complexo, labiríntico e quase codificado – senta-se, durante uma hora, a uns poucos passos da primeira fila de cadeiras, a falar, sozinho – num tom monocórdico, excessivamente detalhado e factual, e estupidamente quotidiano para quem está num palco -, sobre Álvaro Lapa.
Depois de “Raso como o Chão”, em 2012, e “Barulheira”, em 2015, é com “Sequências Narrativas Completas” que o Teatro Nacional São João volta a dar a mão a esta viagem solitária sobre a obra deste homem – desta vez, abrigando o seu “último e mais radical texto”. João Sousa Cardoso rompe com o público, num primeiro instante, ao perguntar “onde ficamos na nossa conversa da última aula?”. E, por segundos, com a imagem dos terríveis dias académicos a roçar-nos a pele, trememos e tememos que este seja um daqueles professores foleiros e insuportáveis.
O homem que vemos ali, sempre sério, atrás da mesa, sobre a luz sombria, foi aluno de Lapa, numa altura em que apenas o soube reconhecer enquanto professor, e não enquanto pensador ou artista (ou sequer pessoa). Anos mais tarde, decidiu homenageá-lo, fazendo arte sobre a sua arte. Senta-se, de caneta na mão e papelada à frente, a dissertar sobre a sua pintura, o seu desenho, a sua escrita, o seu pensamento, a sua atitude, a sua figura fumadora mística. Divaga sobre o tempo, o amor, o previsível anarquismo e a constante viagem, e, em pensamentos cruzados, revela umas datas decoradas, uns factos inúteis e uns acontecimentos desinteressantes. Tudo sobre Lapa.
O ator, que está ali na pele de si mesmo, levanta-se, pela primeira vez, e tudo indica que é o fim da aula. Depois de sair de cena, o público bate palmas, e ele não vem agradecer. Agora que já ninguém está ocupado a tentar acompanhar aquela cabeça elétrica, começam a surgir as comichões: mas, afinal, quem é Álvaro Lapa e por que é que o indivíduo é tão importante, ao ponto de ter espetáculos atrás de espetáculos sobre a sua pessoa? Será que só estão vinte pessoas nesta sala porque as pessoas, lá fora, não querem saber da vida de alguém de quem nunca ouviram falar? O teatro contemporâneo é isto? Porque se é, é evidente que não é para a paciência de todos. As aulas que se dão na faculdade são isto? Muitos lugares vazios, um expert a falar, alguns a acompanhar, e muitas dúvidas por tirar? Se são, é evidente que algo está errado.
No fundo, Álvaro Lapa pode ser um bocadinho de todos nós. Porque é “estranho”, “só quer fazer aquilo que gosta de fazer”, “está sempre diferente do dia anterior”, e só é reconhecido, como sempre, tarde demais. E, de facto, este espetáculo pode ser um bocadinho da nossa vida, porque também falamos sozinhos e porque somos, eternamente, antigos estudantes que conversam com os fantasmas de velhos mestres. João Sousa Cardoso não vem agradecer as palmas, tal como os alunos não agradecem aos professores que lhes mudam a vida. E João Sousa Cardoso está no seu direito de fazer um espetáculo sobre alguém que ninguém conhece – porque todos os desconhecidos são conhecidos de alguém, e não há ninguém que não seja uma autêntica obra de arte. Ainda assim, talvez estas “teatrices” sejam apenas para os loucos. Loucos esses que nos podem salvar.