Cultura
FADO BICHA: MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS PROBLEMÁTICAS
O relógio marca 22h00. Falta ainda meia hora para se dar início ao concerto, mas já o Fado Bicha fez encher o corredor que nos leva até à sala de espetáculos do Maus Hábitos. As portas abrem-se finalmente. Sempre que pensamos que a plateia não pode acolher mais ninguém, eis que alguém novo entra. Parece haver sempre espaço para mais algum curioso que não se deixou ofender pela ousadia do nome dado ao nosso mais conservador estilo musical.
A canção escolhida para dar início a este espetáculo é “Conta Errada”, uma das muitas composições de José Galhardo celebrizadas por Amália Rodrigues. “Este é um fado do qual eu gosto particularmente. É um fado que fala de traição, mas na primeira pessoa, na perspetiva de quem trai. E é um fado meio inocente porque ela traiu, ela está arrependida, mas nem tanto. Quem nunca?”, justifica Lila Fadista. O público ri-se. A atitude descontraída e confiante dos artistas, que aproveitam para se apresentarem, parece despir a sala de preconceitos. “Nós sabemos que o Porto não é muito fadista, mas sejam fadistas por uma noite connosco, por favor”, pedem.
Segue-se “O Namorico do André”, o primeiro single da dupla. É nesta adaptação de “O Namorico da Rita”, onde prazer é retratado e explorado como uma forma de resistência à violência, que o público começa a soltar-se e podemos ver os primeiros passos de dança. Em “Tive um Coração, Perdi-o”, de Amália Rodrigues, faz-se silêncio – por respeito a Lila, que se diz identificar com o desespero da música, e porque o tema assim o exige.
Passado o momento emotivo, é chegada a vez de adaptar o tema “Lisboa, não sejas francesa” e transformar o mesmo em “Lisboa, não sejas racista” – provavelmente o maior desabafo e manifesto dos artistas, que usam o fado para fazer ativismo social. É aqui que apontam o dedo a um Portugal ainda de olhos fechados, que se pauta por episódios de violência policial, e por onde os ares quinhentistas ainda não pararam de passar.
Não saindo da temática do colonialismo, Lila Fadista começa a declamar um texto de uma das suas escritoras favoritas. Neste excerto de Deus-Dará, a autora Alexandra Lucas Coelho apresenta uma teia complexa de informação sobre um período colonial do Rio de Janeiro. A brutalidade e violência das suas cruas palavras conferem um tom mais sério ao serão proporcionado pelos Fado Bicha.
Aproveitando que se fala do Brasil, o grupo pega em ritmos do samba para os cruzar com o fado e cantar “Mulher do Fim do Mundo” de Elza Soares. Também o atual fenómeno de gentrificação, com a qual a dupla lisboeta já é há muito é familiar, e que chegou também à cidade portuense, não se livrou de algumas críticas. É tocada “A Bia da Mouraria”, uma melodia que celebra o amor entre Bia e Adelaide, antes de serem despejadas do bairro da capital.
“Alice” é uma música que dá voz à transexualidade. “Nós queríamos ter músicas que falassem sobre as pessoas à nossa volta que são importantes para nós e para a comunidade. Queríamos deixar essa mesma pegada”, revela o grupo. A canção tem como inspiração Alice Azevedo, uma mulher transexual que tem dado a cara em defesa dos direitos de pessoas trans, da comunidade LGBTI e intimamente relacionadas com questões feministas.
A sala reveste-se de luzes verdes para, apropriadamente, se tocar “O Rapaz da Camisola Verde”, de Pedro Homem de Melo, um poeta homossexual. Desta vez, João Caçador, a quem os instrumentos ficam entregues, também canta. Assim que a sua voz se faz ouvir pela primeira vez, é possível ouvir a aprovação por parte do público. “Ora, vamos continuar nos poetas homossexuais, se me permitem” é a frase que introduz a música “Fado Botto”, baseada em vários poemas de António Botto, que lançou um livro de canções homoeróticas na primeira pessoa.
A meio do concerto, a dupla volta a trazer animação até à sala com o tema “Lila Fadista”. Animação esta que depressa dá lugar a mais um momento sério. “Vamos recuar umas décadas e vou apresentar-vos uma pessoa da qual possivelmente nunca ouviram falar: Valentim de Barros, uma vítima muito clara de um Estado e de um sistema de saúde homofóbicos”. “Valentim” é um poema de Inês Marto escrito para celebrar a vida do bailarino português, internado no Hospital Miguel Bombarda, submetido a uma leucotomia e mantido durante anos em cativeiro, sob um único diagnóstico: homossexualidade.
“Permitam-nos só mais uma dramalhice” são as palavras que nos dão a entender que o tom sério veio para ficar. É a vez de ouvirmos “De Costas Voltadas”, poema original de Maria do Rosário Pedreira, cuja letra foi alterada de modo a retratar um problema que a muitas pessoas da comunidade LGBTI diz respeito: a rejeição familiar.
Não fugindo ao tema, mas agora com uma postura mais descontraída e animada, o grupo dá ênfase a histórias caricatas daqueles que se recusam a assumir quem são. Conservaram a melodia de “Nem às Paredes Confesso” e conferiram-lhe uma nova letra, transformando-a na “Crónica do Macho Discreto”. Chegado o refrão, o público é desafiado a acompanhar, e o Maus Hábitos une-se assim numa só voz.
Lila Fadista anuncia o último tema da noite: “Marcha do Orgulho”. É com um caloroso aplauso que o público agradece os momentos musicais ali passados, enquanto os artistas fazem uma vénia e saem do palco.
Terminado o concerto, a porta dos bastidores abre-se e o grupo retoma ao palco, para aquela que é a canção que encerra verdadeiramente o concerto. É tempo de cantar “Cucurrucucu paloma”, tema que funciona como catarse para os artistas, depois da viagem emocional feita ao longo da atuação. Lila Fadista senta-se ao lado de João Caçador, numa aproximação intimista, e recorre ao espanhol para cantar ideias antagónicas, mas que ao mesmo tempo se completam, tais como a tristeza, a esperança, a morte e a vida.
Se outrora o nosso género musical por excelência evocava temas de emergência urbana, cantando a narrativa do quotidiano com todos os problemas sociais que lhe eram inerentes, faz agora todo o sentido surgir um projeto interventivo que reflita sobre temas contemporâneos. E porque se mudam os tempos, mudam-se as problemáticas: a homofobia, o machismo, o abandono familiar, o racismo, a violência e o medo de “sair do armário” são alguns dos muitos assuntos que merecem a especial atenção da guitarra elétrica de João Caçador e da voz de Lila Fadista. Não se fez silêncio, mas cantou-se o fado.
Artigo da autoria de Francisca Gomes.