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Cultura

VODAFONE PAREDES DE COURA: A PAZ DO TABOÃO

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Quem frequenta festivais de verão tem um carinho especial pelo festival minhoto, e as provas estão nos últimos anos onde esgotam passes gerais e diários. Os nomes do cartaz são o principal motivo, mas há sempre algo mais que realça Paredes de Coura no mercado concorrido dos festivais em Portugal.

Já é quase senso comum que o festival começa uns dias antes do abrir das portas principais. Na sexta-feira que antecede o festival, o campismo abre e no dia seguinte o festival sobe à vila. Durante estes dias, os campistas mais fervorosos aproveitam tudo o que festival lhes pode dar, desde os banhos de sol na praia fluvial e passeios de barco insuflável no rio, aos concertos durante à noite que fazem com que os milhares de pessoas subam à vila e conheçam a casa do festival além campismo.

É também cada vez mais simples ser campista em Paredes de Coura: embora muitos ainda torçam o nariz a dormir numa tenda, cozinhar ao ar livre e tomar banho de água fria, o festival proporciona a cada ano melhores condições, seja a nível de chuveiros e casas de banho ao aluguer de material de campismo, e uma grande parafernália de barracas de comida, bebida e tendas especiais que acompanham os limites da mata.

A 27ª edição foi marcada pelas vozes femininas do indie e por “velhas” glórias ainda prontas a mostrar à juventude toda a sua arte. Com os passes gerais esgotados, acabaram de seguida os bilhetes diários para a primeira noite, encabeçada pelos The National. Não tardou muito para que o dia de New Order ficasse também sem lugar para mais pessoas na famosa encosta que leva ao Palco Vodafone. Ficaram por esgotar os dois seguintes dias, mas a contagem andou lá perto, com nomes como Spiritualized e Father John Misty e a fechar a edição. Com Suede, Freddie Gibbs & Madlib precedidos pela única Patti Smith, é natural que a massa humana fosse de peso. No total, foi uma média diária de 26 mil pessoas a encher a modesta vila minhota.

A chegar ao recinto, é notória a transformação nos últimos anos. Há cada vez mais lugar para aparatos publicitários, disfarçados por apelos e medidas ecológicas tomadas pela organização; oferecem-se bolsas para as beatas e cantis de água reutilizáveis. Os copos, também reutilizáveis – outrora a custo de uma caução – já não podem ser devolvidos, proporcionando uma coleção de copos de plástico nas casas dos festivaleiros que trazem mais pó do que recordações do dinheiro gasto em cerveja ao preço dos olhos.

Coube aos bracarenses Bed Legs a honra e compromisso de abrir a edição de 2019 do Vodafone Paredes de Coura, e foi perante um recinto ainda modesto de público que a banda confirmou a sua aposta, proporcionando um concerto digno de abrir o festival. Falaram ser um “grande sonho” atuar no palco principal, depois de uma passagem pelo palco secundário em 2016, que na altura lhes valeu grandes elogios.

A ronda do indie estava para arrancar: a estreia de Julia Jacklin em Portugal serviu de introdução ao estilo musical mais presente na 27ª edição do festival minhoto. A artista australiana apresentou Crushing com um simples e belo concerto a combinar com o final de tarde. A pausa do indie com voz feminina durou menos de 24 horas, interrompida com a subida ao palco Vodafone.FM de Stella Donelly. A cantora que começou a carreira fazendo covers de Green Day mudou a sua direção musical para algo bastante mais calmo e melódico. Apresentado Beware of the Dogs, Donelly encontrou tempo para passar uma mensagem sobre assédio sexual e o papel dos homens na preservação de um bom ambiente perto de mulheres.

O indie regressou então para o palco principal com a presença de Alvvays, encabeçados por Molly Rankin cruzaram o palco principal com um concerto alegre, embora já encoberto pela monotonia que muitas vezes afeta o género. Seguiram-se as inevitáveis comparações com Mac Demarco durante Boy Pablo, um dos grupos mais promissores da cena indie pop norueguesa (existe), foi recebido com grande expetativa pelo público, proporcionando um bom concerto. Mas o estilo musical já bastante ouvido foi ficando cansado nos ouvidos do público e aquando da presença de Avi Bufallo, no mesmo palco, poucos foram os que abandonaram Car Seat Headrest para ouvir o californiano.

Já no último dia, Alice Phoebe Lou movia público para o palco secundário, onde misturou à já cansativa sonoridade indie um toque jazz à sua voz suave. No entanto, uma das grandes atrações do cartaz “roubou” também público à cantora sul-africana. Num concerto invulgar, Mistki finalizou o saturado indie pop desta edição. Abençoada pelo reaparecimento do sol, a cantora coreografou a sua performace invulgar com recurso a uma mesa. Apesar de toda a energia que impôs em palco, foi notória que a quantidade de indie que é possível ouvir com agrado durante quatro dias foi tomada em exagero.

Já com maior expectativas por parte do público, foi a vez dos brasileiros Boogarins mostrarem a Coura o seu pop psicadélico experimental pela primeira vez. Sem grande necessidade de mostrar os seus temas mais conhecidos o grupo planou pelo início da noite, com os seus acordes suaves e tresloucados proporcionou os primeiros crowdsurfs, contaram umas breves histórias e deram muita música a uma plateia já a compor-se para os maiores expectativas da noite.

Foram os The National que proporcionaram a enchente no primeiro dia, mas ainda estava para vir Parcels, conterrâneos de Julia Jacklin, mostrar todo o seu pop rock com ritmo de dança que descolou os pés de toda a plateia. Foi a alegria e a música de uma banda verdadeiramente feliz por fazer o que faz que moveu todo um festival, apenas com um álbum na bagageira e o mesmo número de passagens por Portugal. O conjunto surpreendeu muitos e deslumbrou outros, forçando o seu lugar num cartaz concorrido de grande bandas para dar um dos momentos mais memoráveis do festival.

Não há muito que os The National possam trazer de novo ao público português; a sua primeira e única presença em Paredes de Coura tinha sido há quase década e meia, os americanos ainda obscuros num cartaz quase criminoso devido à quantidade e qualidade dos artistas que por lá passaram, mas os seus fãs mais atentos tiveram diversas oportunidades de os ver em diversos festivais ao longo dos anos. Começaram prejudicados pelo som, mas foram conquistando o público com empatia e o seu indie rock melancólico. Entre um set longo, Matt Berninger teve ainda tempo para contar um encontro com Nick Cave, nessa enfática edição de 2005. Sem deslumbrar, mas com um público tão bem ensaiado como o desejável, a banda norte-americana satisfez todos os seus fãs na primeira fria noite de Paredes de Coura. Para quem perdeu desta vez, há mais The National em dezembro, desta vez a sul, na capital.

No segundo dia do festival, a aposta foi mais uma vez nacional, com os Cave Story num palco secundário pouco composto e claramente prejudicado pela sobreposição com o concerto de Khruangbin, logo ao lado. Os texanos proporcionaram um dos melhores concertos do festival, justificando a sua presença no horário nobre. Sempre animados, fazendo o público dançar ao seu som simples e complexo, misturando indie com rock psicadélico com um brio de jazz, foram interlaçando a sua música com umas brincadeiras com garrafas e telefones fixos, demonstrando a boa disposição e criatividade num género já bastante gasto. Confirmaram a sua qualidade ao vivo e o seu estatuto como uma das bandas mais promissoras do momento, levando a crer que certamente irão regressar e terão mais destaque num cartaz no futuro.

A presença de uma banda vinda da lendária cidade musical de Seattle é sempre motivo de grande expectativa não fosse essa a cidade que nos habituou com bandas como os Nirvana, Band of Horses, Pearl Jam, Soundgarden, Alice in Chains entre várias outras. Os Car Seat Headrest, já recorrentes dos palcos portugueses, faziam, no palco principal, levantar as maiores nuvens de pó da edição, rasgando o seu rock alternativo com um público entusiasmado que se recusou em não acompanhar cada um dos refrões a pulmões cheios. Não jogam na mesma liga que nos nomes anteriores, mas vão construindo o seu futuro já com bastante reconhecimento.

O momento do dia estava para chegar e era, sem surpresa, com os New Order, banda fénix do fim dramático dos lendários Joy Division, que se apresentou pela segunda vez em Portugal em quase 40 anos de carreira. Pelo público, eram incontáveis as t-shirts com a capa de Unknown Pleasures, o álbum mais bem sucedido da banda de Ian Curtis. Os New Order, agora exclusivamente encabeçados por Bernard Sumner, após a saída de Peter Hook em 2007, fizeram jus à sua promessa inicial: depois de apresentar êxitos mais recentes de Music Complete, deixaram o synth-pop regressando ao post-punk com “She’s Lost Control” e “Transmission” de Joy Division. Navegando por estes dois estilos que marcam a banda, o público manteve-se ao rubro, embora com uma clara tendência para a discografia mais antiga. No fim, o encore tirou as teimas a quem não tinha ainda disfrutado do concerto, regressando mais uma vez à “banda-mãe” com “Atmosphere” (três anos após Mark Lanegan o ter feito no mesmo palco), finalizando com “Love Will Tear Us Apart”, abandonando o palco entre palmas e um coro do público cantando o refrão do grande hit da banda de Manchester.

Com uma das maiores fanbases do país, chegava a hora de os Capitão Fausto regressarem a casa. Com a responsabilidade de fechar um palco pisado pelos New Order, a banda lisboeta introduziu-se com “Amanhã ‘Tou Melhor”, com uma bela coordenação entre os esperados aplausos iniciais e a introdução da banda. Entre muitos agradecimentos e um público ao rubro, deixaram de lado os êxitos mais antigos para apresentar as mais recentes músicas num alegre, mas monótono concerto.

No terceiro dia e penúltimo dia do festival, a banda de abertura foi mais uma vez ostracizada pela plateia em detrimento do concerto no palco principal: desta vez as “vítimas” foram os Derby Motoreta’s Burrito Kachimba. A banda espanhola não teve argumentos contra a presença de First Breath After Coma no Palco Vodafone. Apresentando o novo disco NU e estreando-se no palco principal, a banda de Leiria que reinventou o seu post-rock no novo trabalho, deu, tal como Khruangbin no dia anterior, motivos para ter mais destaque no cartaz e no horário. Depois de um energético e entusiasmante concerto, chamaram a palco Noiserv, com quem partilharam dois temas de ambos os projetos com grande brio, confirmando a qualidade de ambos os projectos.

No dia com o cartaz mais promissor, Balthazar e Jonathan Wilson passaram despercebidos; o indie pop dançável dos belgas foi transmitido com pouca energia e o californiano conseguiu pouco mais do que trazer à memória o concerto de The War on Drugs da edição de 2015. Mas os Black Midi estavam para chegar, e com eles toda a irreverência e selvajaria possível. Com Katy Perry a abrir o set, os jovens britânicos mostraram tudo o que são capazes e, com a sua mistura agressiva de punk, math rock e noise, deram o concerto mais pesado e invulgar do festival. Com apenas um álbum e dois anos de carreira, comportaram-se como senhores da música, sem pausas ou grandes palavras, e foram melódicos e intensos, provando que todos os estilos se podem reinventar – caso haja talento.

Com a noite caída e tudo pronto para os grandes nomes do dia, os primeiros a introduzir-se foram os Deerhunter, mais uma aposta da organização em bandas que lançaram recentemente trabalhos. A banda que se descreve como “ambiente punk” trouxe melancolia e um contraste pleno com Black Midi. Perante um intimidante recinto cheio, Bradford Cox e companhia não tremeram e proporcionaram um excelente momento musical, dificultando a escolha de muitos que tencionavam ver Connan Mockasin no palco secundário. Quem, no entanto, optou pelo nova-zelandês não se terá arrependido: sempre com um tom intimista e intrusivo, o músico não se cingiu aos temas de Jassbusters, o seu trabalho de 2018, e sempre repleto de pequenos improvisos foi trazendo requinte no seu tom pop psicadélico, servindo de boa introdução para o concerto da noite.

Tal como na noite passada, encabeçava o cartaz uma banda que, embora com uma história diferente, surge da separação de um grupo de sucesso, os Spacemen 3. Liderados pelo “homem do espaço” J Spaceman ou Jason Pierce, os Spiritualized – com um dos melhores álbuns do ano passado para o JUP – subiram a palco na sua habitual calma, com o seu frontman encostado numa cadeira à lateral e acompanhados por um coro gospel feminino, ofereceram música como pouco se ouviu em Paredes de Coura. Com poucas palavras e muita música, tocando quase exclusivamente temas de And Nothing Hurt, trouxeram lágrimas e sorrisos largos ao público. Finalizaram tocando “Happy Day”, deixando nada mais a desejar a não ser que todos os concertos fossem assim.

Partilhando o estatuto de cabeça de cartaz, subia de seguida a palco Father John Misty. Como um bom filho que sempre regressa a casa, depois do brilhante concerto de 2016, Josh Tillman, com dois álbuns acrescentados à sua discografia, retorna já com estatuto de estrela, com uma setlist longa e focada em God’s Favourite Costumer. Passou ainda por temas mais antigos, mas ficando a faltar algo como “Bored in the USA” ou o seu épico de crítica social “Pure Comedy”. Apesar de muita dança e carisma, sem faltar uma ou outra piada à plateia, é notório o cansaço de Josh Tillman em final de tour europeia com bastantes concertos em poucos dias.

O último dia do Vodafone Paredes de Coura chegou com a previsível futura nostalgia de final de festival. E são concertos como os dos Time for T, a abrir o palco secundário que contribuem para essas boas memórias, embora com pouco público, o seu tropical indie rock não se notava tão reciclado como muitas bandas anteriores. No palco principal, os Ganso traziam mais público, com um rock bastante morno levando a alguns moshes forçados com a infelicidade de um céu encoberto, não correspondendo à sua sonoridade mais solarenga.

Injustiçados por terem o concerto marcado com sobreposição com a maior atração do cartaz, os Sensible Soccers não se tomaram por rendidos, tocando exclusivamente temas de Aurora. Muitos foram os que se deslocaram ao palco secundário pensando ficar para ouvir um pouco antes de se dirigirem para Patti Smith, mas muitos foram também os que não conseguiram arredar pé do contagiante e hipnótico ambiente que banda portuguesa proporcionou. Merecedores de fechar um palco principal, foram levados por aplausos de um público que se manteve fiel embora já conseguisse ouvir Patti Smith por detrás da orelha.

Não deve ser fácil ser Patti Smith, muito menos a sua banda, mas se dificuldades as tiveram, não as demonstraram. Patti Smith, uma figura do punk e da contracultura, já com mais de 70 anos, uma das poucas mulheres da sua geração ainda a pisar palcos, uma figura lendária, pôs os pés em Paredes de Coura e ofereceu-se a toda a gente. Talvez sempre mais conceituada pela sua escrita do que pela sua música, aventurou-se por covers dos seus colegas de geração, de Jimi Hendrix a Neil Young, tocando ainda Rolling Stones com um medley de “Walk On the Wild Side” de Lou Reed, com toda a garra do mundo em si, agarrava o microfone para passar a mensagem de Jimi Hendrix: fucking peace and love. Se é possível ter tanta revelia e garra com a sua idade, ninguém no público se atreveu a contestar:

we are fucking free

É paz e amor que Patti Smith deseja, mas também já viveu para aprender que por vezes é necessário lutar por eles. Paredes de Coura viveu a sua mensagem e não há melhor lugar para a transmitir.

Lidar com concertos sobrepostos é algo já natural em quase todos os festivais, no entanto, se os Sensible Soccers conseguiram conquistar público até ao final do seu concerto, Kamaal Williams conseguiu também arrastar algum público ainda durante Patti Smith para apreciar o seu free jazz. Com um concerto animado e bastante público a dançar, o quarteto que Kamaal reúne conjura um épico experimental, algo sempre visto no mundo do jazz, mas sempre agradável de descobrir. O palco secundário soube a pouco e a presença de um próximo concerto também dificultou a vida ao britânico.

Freddie Gibbs & Madlib apresentaram-se em Paredes de Coura como os outsiders do cartaz. O duo de hip-hop que reúne o rapper Freddie Gibbs e o produtor Otis Jackson (Madlib) encontravam-se fora da sua praia, mas com uma base considerável de fãs à sua espera. Depois do seu trabalho conjunto de 2014, Piñata, regressaram este ano com um dos álbuns mais conceituados, Bandana. A estreia em Portugal foi invulgar: em 2016 era um dos nomes confirmados para a edição do NOS Primavera Sound, mas após ter sido detido em França e acusado de crimes de violação na Áustria, foi forçado a cancelar o concerto. Após terem sido retiradas as queixas-crime e ter passado um período negro onde pensou desistir da música, Freddie Gibbs regressa em 2019 em peso e com companhia de respeito. Entra em palco de charro e copo de vinho na mão e passa por temas de ambas as colaborações do duo. Repete-se ao pedir ao público para fazer barulho e, na sua revolta contra o sistema, pede repetidamente para que se diga fuck the police. Muitas caras de desaprovação surgiram de quem se tinha dirigido à margem do Taboão para ouvir Patti Smith, mas, embora numa base cultural diferente, a mensagem é semelhante, o amor pela liberdade é o mesmo, e por detrás da atitude thug surgem sorrisos de orelha a orelha e um prolongado abraço a Madlib no final do concerto.

A responsabilidade de encerrar mais uma edição do Vodafone Paredes de Coura ficou a cargo dos veteranos do brit-pop, Suede. Descontextualizados musicalmente e após as mensagens fortes dos concertos anteriores, os britânicos trouxeram toda a energia possível, mas para um público algo desinteressado, que, à exceção da plateia da frente, passou pelo concerto com pouca vontade.

Num Vodafone Paredes de Coura com uma faixa etária mais diversa, acompanhado as sonoridades do cartaz, foi notório o desagrado nalgumas sobreposições de concertos. Paredes de Coura diz ser o habitat natural da música, mas com cada vez mais oferta publicitária e menos atenção a grande parte da música, faz parecer que o festival seja cada vez mais personalizado para o Homem e mais descontextualizado da natureza.

 Artigo da autoria de Francisco Cardoso.