Cultura

A HERDADE: O SANGUE DA TERRA

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Depois de serem aplaudidos em Veneza e em Toronto, Albano Jerónimo, Tiago Guedes e Paulo Branco vieram sentir o calor acolhedor da sala lotada do Cinema Trindade. Em meia dúzia de palavras, introduziram a sua (e nossa) Herdade e o seu percurso viajado. E depois de comentarem a “paisagem incrível de pessoas”, deixaram os sorrisos falar por si. Satisfeitos, deram o mote para a grande tela fazer magia.

A Herdade não cai na brincadeira de Diamantino, nem na superficialidade de Variações. Este é um retrato de mestre de uma família proprietária de um dos maiores latifúndios da Europa, na margem sul do rio Tejo. Tiago Guedes convida-nos a mergulharmos nos segredos de uma Herdade, numa teia de pessoas e relações e na complexidade da partilha da terra. Intensa, animalesca e perspicaz, a produção conseguiu pintar um Portugal que também em Snu foi menos detalhado. Uma viagem histórica, política, social e financeira do nosso país – desde os anos 40, a passar pelo abanão do 25 de abril e até ao início da última década do século XX –, A Herdade é o filme do ano, e faz tremer o cinema lá fora.

O Albano Jerónimo que o povo gosta, o cara-bonita das novelas da noite, transforma-se em João Fernandes e personifica o abuso do patriarcado e o herói traumatizado na infância. Por seu turno, Sandra Faleiro, na pele de Leonor, sua mulher, num registo muito menos histriónico ao que nos acostumou na televisão, deixa transparecer uma versatilidade fascinante e uma densidade emocional muito realista, até estranha ao nosso cinema. É ainda de destacar o restante elenco, uniformemente soberbo, com uma especial ovação a Miguel Borges e à “miudagem”, que já é tão grande: Rodrigo Tomás e Beatriz Brás ensinam que intimidade é silêncio.

Com uma duração de quase três horas, a roçar os tempos de Tarantino, esta Herdade faz-nos ver que Portugal não só é bonito, como tem olhos bonitos para o ver. As imagens são deliciosas, as composições são precisas, e algumas memoráveis, os jogos de luz e de sombras demonstram maturidade cinematográfica, e o suspense lusitano deixou de ser forçado e execrável. A Herdade não tem pressa de se desenrolar, pelo que pode ser considerado lento, aborrecido e equiparável a um calhamaço de Eça – com descrições de muitas páginas e uma aclamação elitista –, assim como pode ser considerado ponderado e incrivelmente inteligente, para que cada plano e cada diálogo tenham o tempo de apreciação que bem merecem.

“Quando as coisas acabam, acabam.” Esta é uma das lições que o pai de João lhe deixa. A terra acaba, e deixa de ser nossa. A vida acaba, e continua com mais alguém. O amor acaba, e só um louco pega nele outra vez. As relações humanas de pais, irmãos, filhos, padrinhos, patrões, amigos e colegas acabam, e nada, jamais, as faz reatar. Quase tudo acaba, quase sempre. Mas felizmente, a grande vantagem da sétima arte é que podemos rever cada película vezes sem conta, como se nunca deixássemos nenhuma sequer acabar.

Artigo da autoria de Inês Sincero.

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