Cultura
PARTY SEM FESTA
“É suposto as pessoas celebrarem números redondos”, disse a dupla fundadora da Estrutura ao JUP, a poucos dias da estreia. A companhia de teatro foi fundada em 2009, por Cátia Pinheiro e José Nunes e, em apenas uma década, já reúnem um leque de várias criações e produções, todas elas com temáticas muito contemporâneas, à base da experimentação e colaboração artística.
Os espetáculos anteriores mergulham em cenários apocalíticos, identidades mediatizadas e até legados políticos. Este aposta na festividade. “Que engraçado, não é tão pesado como os outros espetáculos deles” – ouve-se comentar, no fim da estreia no Campo Alegre, depois de três rodadas de aplausos. Mas a aparente leviandade do tema é enganadora.
“Como todos os espetáculos da Estrutura, o mote inicial é uma coisa muito diferente do resultado final”, confessa José Nunes. “Party” pode ser visto como o teatrinho sobre uma festa estranha. Ou, se o espectador quiser ser pensante, pode ser a encenação de uma complexa reflexão: porque é que celebramos? Porque é que existe esta fixação de registar eventos no tempo? O que é uma festa? Porque é que se dão prendas, nas festas? Porque é que temos de agir de determinada maneira, nas festas? Porque é que as festas são sempre consumistas e cheias de excessos? E porque é que as pessoas têm de estar constantemente em andamento, e a ser úteis? Numa cúmplice troca de olhares, a dupla ri-se – “Fomos desconstruindo o conceito. E, como sempre, tivemos mais perguntas do que respostas.”
Há um mito – verdadeiro – que diz que os atores são crianças, porque só gostam de brincar. Ou seja, um brincalhão de profissão – um ator – brinca com pessoas, com sentimentos, com palavras, com relações, com histórias novas ou já inventadas. Às vezes, brinca tanto, e tão bem, que nem parece que está a brincar. Mas, nesta “Party” eles dão-se ao luxo de brincar, literalmente. O cenário vai sendo montado ao longo do espetáculo: dança-se com bolas voadoras, penduram-se espelhos, montam-se pêndulos, põe-se maquinetas a funcionar. Nada ali faz sentido, até ao último segundo. O texto também é, todo ele, muito dadaísta. De aliens a ilusões de ótica, de esquecimentos do que fazemos a desculpas esfarrapadas para não ir, de tristeza a ansiedade, “Party” faz-nos pensar se teremos, todos nós, linhas de raciocínio tão parvas e pouco lógicas.
Cenicamente e textualmente há decisões pouco consolidadas, como o recurso aos microfones, a opção dos figurinos, a estranheza de alguns diálogos e a rigidez de certas movimentações. Por seu turno, aplaude-se-lhes o risco e a visão que têm do erro e da catástrofe. Todo o espetáculo é construído a apontar para o fim. E, esse fim, o pretendido, pode resultar ou vacilar por milímetros. Por terem, ou não terem sorte – se é que isso existe. “Não sabemos como é que aquilo vai acabar”, afirma Cátia, “pode mesmo correr mal”, acrescenta José. “Mas quão importante é podermos espalhar-nos ao comprido?”, concordam. “Nós fazemos arte como uma ode ao presente”, refere Rogério Nuno Costa, coreógrafo que colabora com a Estrutura. E, nisso, eles acertam na muche. O teatro é (ou pode ser) uma arte efémera e, por isso, deve-se ser arrojado e atrevido. Esta Festa, que juntou, à mesma, família, amigos e prendas, jogou com um risco que não se costuma correr numa festa. Segundo dita a normalidade e a atriz reforça em entrevista, “uma festa tem de ser algo memorável, agitado e feliz. Tudo tem de correr bem. Ninguém faz uma festa para correr mal, só mesmo nós” – e fizeram.
Com um enorme peso auto biográfico, a Estrutura propôs-se a organizar uma festa na qual olhava para trás para, agora sim, conseguir continuar a olhar para a frente. Fizeram a festa, divertiram-se e até apagaram a vela, apesar da melancolia. Mostraram, em cima do palco, entre tantos outros assuntos, o quão ridículo é encontrarmo-nos com as pessoas sempre com uma finalidade. Quase nunca nos encontramos com as pessoas só pelo puro encontro, só pelo prazer de estarmos com elas. No fim da estreia, houve Porto de Honra e a Estrutura esteve só, tal como queria, com os seus, no seu aniversário.
A caminho de casa, pensamos na festa que não nos espera, porque vivemos enfiados numa rotina até ao pescoço. “Party” teve uma boa ideia – fazer uma Party sem Festa – mas é dito, algures em cena, “tinha pernas para andar mas não foi a lado nenhum” e, conscientemente, lembramo-nos desse momento, prestes a enfiar a chave na ranhura da porta. Há teatro para todos os gostos, e há pessoas para todos os tipos de festas. Só ainda não há palco para todos os artistas, que também desejam e merecem.
Artigo da autoria de Inês Sincero