Cultura
KESO: “ESTAREMOS ETERNAMENTE EM CENA”
Plano B. 18h30. KESO desce as escadas que dão acesso às famosas salas de uma das discotecas/bares mais célebres do Porto, acompanhado por NERVE e vários membros da sua equipa. Ao longo de muitos minutos, houve tempo para falar do passado e do presente. “O futuro ainda está por vir”, como afirmou Marco Ferreira.
Dez anos depois do fim da gravação de O Revólver Entre As Flores, gravado entre 2006 e 2009, temos a reedição em vinil deste que é um dos discos de excelência do hip hop português.
A gravação de O Revólver Entre As Flores faz dez anos. Como é que o vês agora, dez anos depois, e como é ouvi-lo, passado este tempo?
Só muito recentemente é que comecei a apurar mesmo o que é que o Revólver [Entre As Flores] me é. Tem uma componente muito específica, que provavelmente qualquer outro disco que eu tenha feito não tem. É um disco musical, é super livre e experimental. Tem muito jazz e swing, e isso deu-se, um pouco, por causa da idade – porque foi feito quando eu tinha 20, 21, 22 [anos], no tempo da faculdade. É um disco onde não estava muito preocupado com o que as pessoas achavam ou não, então só andava a explorar sonicamente.
Ao mesmo tempo, também foi importante, porque foi o meu disco mais colaborativo. Tem colaboração do Lino Veloso Matos (guitarrista dos Expensive Soul), na guitarra, do princípio ao fim, e ele deu um input muito pessoal. Tem o Tiago e o Miguel Morelli, que são dois multi-instrumentalistas que viviam comigo em Lisboa, e que participavam diariamente no disco também. Tem essa componente super musical que acho que agora, com o vinil, ficou ainda mais exacerbado.
Há ali temas que penso que dificilmente voltarei a conseguir fazer. Espero conseguir vir a fazer melhor, mas há ali temas que são de uma liberdade extraordinária, e acho que o mais bonito de O Revólver é isso: ser um disco muito livre e ter uma série de instrumentalismos engraçados.
Foi o primeiro disco em que eu convidei alguém para dizer mal de mim, o Sir Scratch. Também foi o primeiro disco em que, sendo o meu álbum e tendo uma faixa produzida por mim, tem outro artista e eu não entro.
O Revólver é isso: liberdade. Percebe-se, porque foi quando saí do Porto para ir estudar para Lisboa. Vivia a cena lisboeta e a minha juventude académica. É isso o que O Revólver significa para mim.
Achas que um dos fatores para o álbum ter tanto impacto foi a liberdade criativa que tiveste ao criá-lo?
Sim, essa liberdade nota-se, porque acho que ninguém consegue enquadrar o disco naquilo que era feito no Porto, ou seja, não é o som do Porto. Ao mesmo tempo, também não é o som de Lisboa. É o som do KESO, e isso é bom, porque, de certa forma, ajudou a cimentar aquilo que é a minha identidade, o meu experimentalismo, o meu “I don’t give a fuck”, “estou a ‘cagar’ para aquilo que os outros fazem, faço aquilo que me apetece” – com o qual já era habitual eu ser conotado desde o meu primeiro disco.
O Revólver ajudou a isso. Acho que foi um disco que não teve o impacto nacional que o KSX teve, porque passou completamente ao lado. O que é normal. Eu não tinha estrutura nenhuma, esteve quase três anos dentro da gaveta, saiu quase por conselho de amigos… mas acabei por soltá-lo.
Por que é que convidaste o Sir Scratch para dizer mal de ti no álbum?
O Scratch está no disco só porque é um “bronco” que ia lá a casa muitas vezes, para buscar beats, e nunca tinha beats que ele curtia. Mas, de repente, ele tinha aquele beat, e acabou por fazer a cena do “não, fala mal de mim”. Ele fez o rap a falar mal de mim, e eu achei piada àquilo. O som está fixe, era uma maneira diferente de se participar e de colaborar, e funcionou super bem.
Viveste entre Porto, Lisboa e Londres nos últimos anos. De que maneira é que achas que viver nestas cidades marcou a tua musicalidade e carreira?
É normal, quando tu não és muito fechado e quando és uma pessoa que está à procura de cultura. Eu sou super curioso, seja na música, na literatura, no cinema. Foram sempre áreas que eu, desde miúdo, mesmo vivendo no Porto e num bairro social, tentei explorar da melhor forma: estar sempre atualizado, ter o maior conhecimento possível.
Ao conheceres mais “mundo”, ao teres mais mundo, evidentemente, isso tem repercussão no teu trabalho. E com isso quero dizer, como no meu caso, viver e fazer a vida no Porto, em Lisboa ou em Londres, e agora ainda mais rico, porque entretanto fiz duas tours no Brasil e estive na Palestina um mês e meio, isto continua a crescer, e todos os outros sítios do mundo onde eu estive, como o México, onde eu passei e vivi, ajudam a ter mais humanidade, a perceber mais os seres humanos, os problemas sociais, as formas de ver o mundo. E é claro que isso influencia o trabalho.
É como fazeres uma tese. À partida, se fores um gajo mais vivido, com mais exemplos, com aquilo que é básico no conhecimento – que são as referências – à partida vais conseguir fazer um trabalho muito mais interessante do que uma pessoa que não tem referências, que não sai de casa, e que vive fechada no seu círculo de amigos e na sua “terrinha”.
Falando ainda de Londres…
Estive em Londres sete meses fixos, em Lisboa estive cinco anos. Londres é uma cidade onde eu vou, desde miúdo, mas uma cidade onde eu nunca quis viver. É sempre uma cidade onde eu gosto de estar, de ir, de passagem. Na altura, acabei por ficar lá, e vim embora porque já não estava a suportar. Mas foi o suficiente, foi vivido super intensamente.
E achas que a tua estadia em Londres mudou a tua perspetiva sobre o hip hop português? Há um antes e um depois de Londres?
O antes e o depois de Londres é o KSX, que é o pós Londres. E não é, ao mesmo tempo, porque as influências sónicas do KSX são as que eu sempre tive, fosse onde fosse. O KSX é um pós PEC4, um pós Sócrates, uma reação ao Passos Coelho, a todo um contexto social, político e histórico.
A minha música está um bocado conotada com o KSX2016, o que é normal, pois é o último trabalho que eu tenho. E também é normal que toda essa conjuntura económica, que me levou a emigrar [tenha influenciado].
Na altura em que eu emigrei, fiz um texto enorme a explicar porque é que estava a emigrar. Londres acaba por ser importante para eu desenvolver o texto do “BruceGrove” – que fala de viver numa grande metrópole. Mas que, ao mesmo tempo, era algo que eu já sentia em Lisboa, que era uma grande metrópole também, super gentrificada, despersonalizada. Por isso, é só um resumo daquilo que se passa no mundo, e eu continuo a viver isso no dia a dia, continuo a estar em grandes metrópoles, no mundo inteiro, e continuo a sentir o mesmo.
Essa ideia de cada vez haver mais solidão é algo que está muito associado também às novas invenções que nós temos: como a internet, o telemóvel … Foi a minha forma de fazer uma síntese.
O “Gente e Pedra” [faixa do álbum KSX2016] resume muito bem aquilo que acabaste de dizer.
Ya, ya, o “Gente e Pedra” também é um pouco isso. Aliás, como o KSX no geral.
Agora, voltando ao início. A origem do nome KESO. Começaste como K S Xaval.
KS Xaval que já era “KESO” Xaval.
Mas porquê KESO?
Simples, é aquela cena de miúdo. Eu comecei a pintar em miúdo e, no graffiti, muito cedo. Na altura tinha vários tags, e chegas a um ponto em que queres escolher um. Na altura, foi muito simples: escolhi quatro letras que ficassem bem juntas, um nome que tivesse piada e que não houvesse um gajo igual aqui perto. Foi da forma mais simples, mais rudimentar possível. Depois pronto, começa.
Por acaso é um nome que acabou por ser adaptado de mil e uma formas, pelos meus amigos. Foi uma coisa natural, surgiu quando eu era miúdo, o primeiro “KESO” surgiu quando devia ter para aí uns 12 ou 13 anos.
Falaste de seres writer. Começaste pelo graffiti e depois é que foste para a música. Foi o graffiti que, de certa forma, te levou para lá?
Comecei a fazer rap um bocado mais tarde. Sim, acabas por fazer parte. Integrei-me e comecei a estar mais interessado no movimento [hip hop] através do graffiti. Foi por causa disso, desde criança. Eu lembro-me de estar interessado no graffiti desde criança, desde que brincava com legos. Na altura, eu já recortava os graffitis dos jornais, nos poucos em que havia, e colava-os nas paredes das cidades de lego que eu fazia em casa.
Eu lembro-me perfeitamente dos meus domingos, que eram os dias em que estava livre, e pedia aos meus pais, se fosse a algum lado com o meu pai ou mãe, se podíamos passar por certa rua para vermos “aquele” graffiti – porque havia poucos no Porto, mas já havia alguns e passávamos só para eu ver, sentir aquela emoção.
Continuo a sentir exatamente o mesmo quando vejo essas fotografias. Só que depois, pronto, a evolução acabou por ser natural, acabei por seguir um bocado a parte musical, comecei a “rappar”, comecei a dar freestyle, muito cedo. Comecei a ganhar um bocado de nome e depois continuei sempre no meu caminho. Houve os anos em que estive em Lisboa, em que, para além de estar a fazer O Revólver por diversão, estive super concentrado no cinema. Foram anos muito intensos de cinema. Estive sempre ligado à cultura, em geral.
Ainda mantens o hábito do graffiti? Porque basta dar aí umas voltas pela baixa do Porto, e encontramos marcas tuas, recentes.
Sim, volta e meio estamos aí. Imagina, se eu dou cabo de uma cena pública, se faço um “KESO” gigante, toda a gente sabe quem eu sou. Portanto, tento fazer as coisas em sítios em que não dê grande “espiga”.
Eu gosto de bombar no centro da cidade, não tem problema nenhum. Escolho umas chapas de obras… se tiver problema, epa ya, são chapas de obras.
A arte esteve sempre presente na tua vida, de várias formas. Tiraste a licenciatura em Cinema, na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), em Lisboa, e tens referências ao cinema português nos sons de O Revólver, como o “Belarmino”.
Lá está, foram anos muito intensos, foram anos em que passei muito tempo no cinemateca, no Saldanha, onde, na altura, havia um cartão que era o King Card, em que pagavas 15€ por mês e podias ver dois filmes por dia. Foram anos de interiorização e trabalho também, porque acabei por trabalhar em vários festivais, em Lisboa, no Festival de Cinema Gay e Lésbico, no Festival de Cinema Francês, nas primeiras edições do Estoril, do Paulo Branco, no Indie Lisboa… acabei por estar envolvido naquela cena lisboeta toda, por isso é normal que houvesse alguma referência. Aliás, o KSX ainda aproveita muitos samples de uma cena que eu cheguei a fazer de instrumentais só samplados de filmes portugueses.
Disseste que trabalhaste no Festival de Cinema Francês. Nota-se que tiveste influências dessa zona. Ouves muito rap francês?
Acho que, no Porto, em geral, temos muita influência [de França]. Nós olhamos para os EUA, e nós somos muito East Side, muito Nova Iorque. Mas nós somos muito, muito fãs, e a nossa estética gira muito em torno daquilo que eram bandas como Funky Family, como NTM, entre outros – bandas das quais nos sentíamos muito próximos por serem europeias.
Há uma grande diferença entre o rap europeu, na sua grande componente, e o rap americano. Há uma parte do rap americano que se assemelha muito mais ao rap europeu. Mas, no geral, eu acho que o [rap] europeu é muito mais político, muito mais de esquerda, muito menos capitalista e muito menos virado para esse lado do “ter” e do “self made man“. Há uma parte social muito mais pesada e, por isso, acho que é normal, pelo menos na escola do Porto, haver muita influência do rap francês.
Como tens uma estética muito própria, é difícil identificar quais são as tuas influências do hip hop português, ou até mesmo no internacional. Mas tiveste contacto com os Dealema e até chegaste a ir ao Segundo Piso.
Nós somos sempre influenciados pelas bandas que são mais importantes para nós quando somos miúdos – seja Dealema, seja Mind Da Gap, CS, é sempre importante. Mas, a nível sónico, acho que as minhas influências não estão em nenhum espetro do rap.
Há artistas de que gosto muito e costumo dizer, na brincadeira, por exemplo, que o Damon Albarn, dos Gorillaz e dos Blur, é meu primo; e que o Thom Yorke, dos Radiohead, é meu tio.
Não tenho instrução profissional, não estudei música, mas aquilo que é o meu espetro musical é gigante, e não sou muito virado para uma cena específica. Não sou super influenciado pelo Premier ou por nenhum dj específico… tenho uma cena muito livre. E acho que isso também faz um bocado aquilo que eu sou. Tento sempre encontrar e absorver o melhor de todos os cantos e depois isso acaba por ser natural e ter uma influência natural na maneira como faço as coisas.
Em relação ao teu processo criativo: fazes primeiro os beats ou as letras?
Nunca escrevo antes da composição. Geralmente componho e, dependendo da época, da plataforma que estou a usar, do “doc” que estou a usar, do tipo de sintetizador, começo a perceber, exatamente, o que quero fazer, onde e como. Mas nunca escrevo antes.
O que faço muito é: vivo bastante as ideias, desenvolvo-as muito na minha cabeça, frases slogan, frases que tenho na cabeça, que sei que quero falar sobre isto ou dizer desta forma. Depois, mais tarde ou mais cedo, acabo por encontrar essa base musical para desenvolver aquela ideia ou, pelo menos, a mais indicada para aquela ideia. Geralmente é sempre assim, nunca tenho uma letra antes de fazer o instrumental.
É curioso fazeres a reedição do álbum em vinil. Porquê em vinil?
Primeiro, porque eu sempre quis ter um disco em vinil. Segundo, porque já há algum tempo que eu deixei de comprar CDs, e passei só a comprar vinil. Acho que como objeto acaba por ser mais valioso, não só por ter um master, um tipo de som diferentes – porque é feito especificamente para aquele tipo de plataforma – e por ser um objeto muito mais duradouro e maior.
Acho que neste momento é preciso lidarmos um pouco mais com a proximidade com a música. Não esquecer essa parte de que a música é feita para pessoas, que tem todo um carácter. Existe toda uma cultura dentro daquele objeto, e a maior parte das pessoas não trata a música assim.
Estamos encharcados de “azeiteirada”. Nunca a sociedade esteve tão “azeiteira”, clichê e superficial. Não há recordação de alguma vez isso ter acontecido. Encontrei uma espécie de justificação para isto, que é positiva, porque este é só o primeiro passo. Acredito que agora, aos poucos, apesar de demorar tempo, as pessoas comecem a apurar os seus gostos e a sua personalidade. Continuem a perceber que há diferenças muito grandes entre as pessoas.
Nós não temos que ser todos iguais no sentido de chegar a uma discoteca e ter que saber todas as letras que as outras pessoas sabem, ou que o dj tem de passar música que eu conheço. É muito bom chegar a um sítio e ter um dj a passar música que não conheces de lado nenhum, porque isso quer dizer que tem um gosto musical muito específico. E, se calhar, tu vais aprender, e vais gostar muito.
Acho que a razão para isto é muito simples. Há muito mais gente a consumir música, a ter acesso a cultura, e com dinheiro – e ainda bem. O tempo da ditadura já passou, já não são só determinadas pessoas que têm acesso à cultura. Há muito mais gente nas faculdades, a estudar.
Antes era uma cena muito especifica, muito de nicho. As pessoas tinham muito tempo e tinham o poder para se desenvolverem intelectualmente e a nível de personalidade. Hoje em dia, já está tudo mais na correria. Mas há mais gente com acesso a isso. O que está a acontecer, e consigo explicar-te isto de uma forma muito simples: agora, é impossível estares num concerto, porque o pessoal está sempre a falar.
As pessoas que estão nos concertos, é fantástico estarem nos concertos. São pessoas novas que estão nos concertos, há mais gente a ter a possibilidade de ir a concertos. Só que não foram educados… os pais não souberam educá-los. Os pais não eram cultos, os pais não tinham essa possibilidade, e eles agora têm. Então, começam a encontrar-se em posições em que os pais nunca estiveram.
E a música é um pouco isto. Não te fica bem chegares ao pé de mim e perguntares, “mas então, de que é que tu gostas?”, e eu responder “ah, gosto de tudo”. Não te fica mal, mas também… não é, “não te fica bem”. Porque isso é algo que é identitário. Ajuda-me a perceber quem tu és, onde é que tu andaste e por onde é que tu vais. E as pessoas não são assim.
Mas isso é normal, porque está tudo a dar assim de caras, de repente, com a realidade. Está toda a gente a ter acesso às coisas, é maravilhoso, a internet ajudou muito a isso, ajudou a estender a cultura. Agora, não se justifica é a cultura ser mais barata do que nunca, e teres acesso às coisas da forma mais fácil possível. Não se justifica ninguém hoje em dia dizer “Ah, eu sou pobre, não posso ler”. Não se justifica mesmo.
Tu podes comprar um livro que custa 10€ – são dois maços de tabaco. E as pessoas não quererem, pura e simplesmente, saber daquilo que se está a passar, daquilo que se está a deixar para trás – que é o legado cultural, que é o nosso maior bem, a nossa riqueza cultural e a riqueza cultural do mundo – é um problema. E não estou a falar de uma riqueza portuguesa [só]. Isto é um grande problema.
Eu vejo isso como um problema. Se calhar, eu é que tenho um problema com isso. Mas esta é a realidade, e sinto isso em todos os campos, seja na hotelaria, seja nas faculdades, seja nas mais diversas plataformas, daquilo que seja. Pessoal que está completamente descabido, só porque tem dinheiro para lá estar, de repente tem acesso àquilo, tem o poder de lá estar, mas não sabe lá estar. Não faz ideia do que é estar ali, não foi educado a isso. Por isso é que, por exemplo, no Porto, eu só saio num ou dois sítios. Na realidade, eu só saio àqueles sítios porque, mesmo que eu não goste da música, sei que as pessoas que estão lá a passar música são pessoas que sabem de música. Sei que as pessoas que lá estão, não vão ser pessoas que vão arranjar problemas. Sei que não vão ser mal educadas, que não se metem com ninguém mesmo quando estão embriagadas.
Acho que é aí que consegues juntar a grande diferença. Eu não suporto esta zona aqui, a baixa do Porto é “nojenta” neste momento. Isto é um antro de tolinhos da cabeça e prefiro resguardar-me em sítios mais relaxados – em que pelo menos vais conhecendo as pessoas, vais percebendo que as pessoas sabem estar. Podem ter atos desvairados, ya, podem ter, claro que sim, todos nós temos atos desvairados, mas não da forma como acontece, não desta forma.
Ninguém quer saber de nada. Tens sítios onde o dj está a passar música do youtube. Para que é que tens um PA gigantesco, que é suposto passar boa música, ou que a música é suposto ser boa, e tens que passar música do youtube? É insuportável. As pessoas não estão educadas, é só isso. Está na altura de começar a educar a malta. Vamos ser críticos, ya, claro que vamos ser.
Achas que antigamente as pessoas viam as músicas como um escape para aprenderem coisas novas e, hoje em dia, ouvem a música apenas para distrair a mente, e não têm “paciência” para absorver conhecimento, por causa da rotina diária?
Não, nada é diferente, continua tudo igual. Quem continua a tentar fazer música com um determinado conteúdo, neste caso mais politico-social, continua a fazê-lo e continua a existir, e cada vez há mais. Também há mais pessoas a fazer música só para “encher chouriços”.
Agora, que as pessoas consomem mais música, consomem. Porque têm mais fácil acesso à música, que era aquilo que eu estava a explicar. Eu sei que o dia a dia das pessoas está cada vez mais cheio, parece que as pessoas não têm tempo para nada, mas isto é uma espécie de sentimento que está a ser gerado pela velocidade a que as coisas andam e pelo tipo de informação a que tu te expões constantemente.
A maior parte das pessoas têm distúrbios de ansiedade, porque estão constantemente a serem expostas a ‘merdas‘ a que nem deviam ser. Porque é que eu, de repente, estou no meu telemóvel, e estou a ver metade da vida de x pessoas? Porquê? Isso não existia. Eu não tenho que ver a vida daquelas pessoas. E, agora, é uma questão das pessoas começarem a pegar neste mundo de possibilidades, filtrarem, e começarem a escolher o que é que querem para elas.
Vai haver uma sensação de perda ou que estás a perder algo, porque a internet continua a existir e a informação continua ali, a mil. Mas o grande poder deste século vai ser tu conseguires, finalmente, criar a tua barreira protetora e começares a filtrar, exatamente, o que é que tu queres, o que é que tu não queres, de que é que precisas,e de que é que não precisas. E nunca houve tanta oferta como há agora.
Por isso, agora é só começarem a fazer as opções, não terem medo de fazer as opções, não terem medo de terem personalidades vincadas, porque fica bem as pessoas terem personalidades vincadas. “Ah, é um gajo com uma personalidade muito forte” – ainda bem. O que a gente quer é pessoas com personalidades muito fortes. São pessoas que, pelo menos, sabem o que é que querem e o que é que não querem.
Há muita gente, por exemplo, que me vem com a conversa do “tu não te expões, tu não vives a vida”. Não, eu não vivo a vida, eu vivi muito a vida e continuo a viver muito a vida. Eu sei é o que é que eu não quero viver. E, por isso, não me peçam para me expor a algo que eu sei que não quero viver. Isso já vem da minha educação: eu não sou da geração da internet. Sou um bocado, porque sou o filho direto do aparecimento da internet, mas consigo perceber essas diferenças no meu dia a dia: se eu não tenho que ter e viver isto, não quero saber e descarto.
Acho que é isso, a música é exatamente isso. As pessoas quando começarem a perceber “o meu perfil é este, e eu adoro este artista, porque eu me identifico com este artista, somos muito próximos, é a nossa cena”, vai ser diferente. A maior parte das pessoas nem sequer tem isso na vida delas.
Isso é como chegar ao Primavera [Sound], agora, e eu dizer: “como é que metade deste cartaz está aqui? Que palhaçada é esta, what the fuck?”. Eu já não sei para onde é que vou, começo a perder essa noção. Mas “ah não, temos que agradar a todos”. Não, não temos que agradar a todos. Dá para fazer 50 festivais, então façam um de cada estilo. Ao menos, quem vai sabe ao que vai. Eu não sou obrigado a entrar em todo o lado e a gostar de tudo, não, não sou. As pessoas não são assim, nós não somos assim.
Por falar em personalidade vincada, tiveste uma atuação num “Ser Humano”, na qual foste, manifestamente, diferente de todos os outros. Estavas só lá sentado, a cantar. Porque é que adotas esse tipo de estilo?
Já o Sam [The Kid] me fez essa pergunta: “Porque é que tu cantas sentado, para te sentires alguém?”. Eu:”não brother”. É como eu gosto de estar, é como eu me imagino.
Eu canto assim porque me apetece, e sinto-me muito confortável a cantar sentado. Sou super nervoso, também sou um bocado tímido, e sinto-me mais seguro, sinto-me mais relaxado. Se tiver sítio onde me sentar é espetacular, e não vejo qualquer tipo de problemas, nem estou preocupado em estar a demonstrar uma atitude, que é uma atitude genérica do rap ou do hip hop. Não estou, eu sou eu, “doing my thing”, gostas ou não gostas.
Também é importante as pessoas não gostarem e dizerem que não gostam – para mim é super importante. Os haters são os melhores para nos ajudarem a crescer, porque estão sempre à espera de uma fraqueza tua. E, geralmente, não te apercebes dessas fraquezas. Então tens o hater, que é o gajo que te vai dizer. Perguntas “como é que eu deixei passar isto?” e tratas, e começas a trabalhar para melhorar aquela parte. E é isso… não tenho problemas nenhuns com a minha postura.
Não achas paradoxal que, numa altura em que há cada vez mais direitos, as pessoas estejam, aparentemente, a tentar ser mais formatadas? E qual é que achas que é o papel do hip hop aí? Em que é que achas que o hip hop pode ajudar nesse aspeto?
O hip hop surge numa época muito específica. Há um filme muito bom em que vocês conseguem perceber como é que nasce o hip hop, que é o Rebel Kings – que é um documentário sobre os gangues que apareceram no Bronx [em Nova Iorque].
O hip hop surge muito com uma cena que é muito atual, que é a identidade, o “sê tu mesmo e tu vais conseguir”. Só que não surge numa altura de auto ajuda. Hoje em dia há auto ajuda.
O rap, neste momento, pode ajudar a alarmar e a alertar para este tipo de situações, que eram as situações de que estava a falar há bocado. Tipo, “tu és um poço de azeite, estás a ser super egoísta, narciso” – isso são ‘merdas’ bíblicas. E nós, com o rap, podemos ajudar a alertar para esse tipo de problemas, que a publicidade nunca vai ajudar, ou que o tipo de música popular que é feito em função da publicidade te vai ajudar.
Hoje em dia, metade do rap nacional é publicidade a sapatilhas e a fatos de treino. Isso é nojento, não tem nada a ver com o rap. Os RUN-DMC aparecem assim, eram bons a vender sapatilhas. Mas o pessoal curtiu foi quando apareceu o NAS, com o pessoal a dizer mesmo: isto é assim, assim, assim, isto é a realidade, não é só vestir. A maior parte das pessoas, hoje em dia, tem o instagram para andar a mostrar a roupa e a imagem. E, se calhar, conheço aquela pessoa e aquela pessoa é um nojo. Isso não é fixe.
Para terminar, no “Eternamente em Cena” [faixa do álbum O Revólver Entre As Flores], ouve-se na sample “Olha uma coisa que eu te vou dizer/Tu aqui não tens futuro nenhum”. Agora, dez anos depois, a opinião mantém-se? O que diz o futuro?
Isso é de um filme do João Canijo. Nada. Nunca o “Eternamente em Cena” foi tão acertado. Essa faixa tem narrativas filosóficas e Bíblicas sobre o eterno retorno, ou seja, se o “Eternamente em Cena” tivesse que ser comparado a um livro dos que compõe a Bíblia seria o Eclesiastes.
O Eclesiastes fala um pouco sobre isso, que é: “faças o que quiseres, debaixo da Terra ou debaixo do Sol, nada mudará, tudo será como é”. E o “Eternamente” é essencialmente isso: é fazer perceber que nós andamos aqui num ciclo repetitivo, que por muito que nos reinventemos e sejamos super inovadores, há muito pouca cena inovada na realidade. Estamos todos em função do capitalismo. A pobreza é necessária, a pobreza continua a ser necessária.
Infelizmente, há uma série de problemas sociais que vão continuar a existir, e esse é um alarme eterno para a vulnerabilidade humana. A gente é só de carne e osso, o melhor mesmo é tentarmos fazer o melhor possível por nós, pelos próximos, tornar o mundo melhor, não olharmos tanto para o nosso umbigo e estaremos “eternamente em cena”.
Artigo da autoria de Francisca Costa