Cultura

A TRAGÉDIA DE JÚLIO CÉSAR: DEIXA PARA LÁ O CLÁSSICO

Published

on

“A Tragédia de Júlio César” é tudo menos uma tragédia. A tocar, sem vergonha, na comédia, esta peça é uma transposição da versão shakespeariana para uma versão de tal modo contemporânea, que muito dificilmente se pode imaginar uma outra recriação ainda mais contemporânea.

Uma das inúmeras particularidades a evidenciar é que o espetáculo é apresentado em três planos de ação, paralelos entre si: além do palco propriamente dito; há um segundo palco, na retaguarda, separado por cortinas; e existe ainda a linha narrativa que se desenrola no ecrã, através da projeção em vídeo.

A encenação optou por partilhar o privado – os segredos e as conspirações – com filmagens de cenas nos bastidores, que são divulgadas pela empregada de limpeza – que, no drama original de Shakespeare, representa o profeta. Todo este “behind the scenes”, revelado pela câmara perseguidora “watching you”, traduz a relação entre a política e as artes, e deixa transparecer a ambição, parasitismo e mesquinhice que caracterizam as personas e o universo em questão.

Este método conferiu um tom cinematográfico e digital à peça, e tornou tudo mais estimulante. De referir ainda que a realização e o acerto temporal do vídeo estão de tal modo no “ponto pérola”, que o espectador se questiona se o que está a ser projetado é um direto ou uma gravação.

Muitos outros traços da contemporaneidade foram marcantes e distintivos, tais como questões de género e assédio – reveladas por esporádicas palmadas no traseiro das mulheres (atrizes que, ainda que vestidas de forma feminina, estavam a representar homens romanos, uma vez que o senado era inteiramente masculino). Ou até questões tecnológicas (por meio de imagens de um romano a fazer as suas necessidades, vidrado no telemóvel que tem na mão).

Ou seja, a opção pelo abraçar a realidade contemporânea, não só contribuiu para familiarizar o público, como conduziu, incontornavelmente, para uma ridicularização das personagens e das cenas em si. Que ainda foi reforçado pela soundtrack – que conferia um laivo de dramatismo e suspense de telenovela da TVI às 22h17 de domingo.

Embora não lhe faltasse a complexidade e a extensão que caracterizam as peças shakespearianas, esta destacou-se por uma leveza e airosidade inesperadas. A forma irónica e familiar como foi representada, aliada a uma quase banalização da história romana, suavizou a perceção geral da obra e tornou Shakespeare mais acessível.

Cenas hilariantes onde personagens entram de cuecas e de óculos de sol, um CD player aleatório que começa a tocar, ou, mais cómico ainda, a imagem insólita da degustação de fatias de um bolo cortado de entre o meio das pernas de um César morto, são, sem dúvida, lufadas de ar fresco no meio de um pesado classicismo. No entanto, o cómico não facilita a compreensão. De facto, cada detalhe inesperado levou à formulação de ainda mais questões no final da peça.

Dividida em duas partes, a história de “A Tragédia de Júlio César” centrou-se, num primeiro momento, na conspiração do senado contra o poderoso César e no assassínio consequente do mesmo. Num segundo momento, foca-se na guerra civil (despoletada pelas visões distintas face ao homicídio deste – um apunhalamento com uma ferramenta de cortar bolo).

No entanto,esta não foi uma guerra civil representada de forma tradicional – na realidade, não houve nada de tradicional. No palco, decidiram “brincar à guerra”: armados com brinquedos e tudo. Embora, possivelmente, menos real ou violenta, esta foi uma representação quase mais viva, efusiva e detalhada.

Certo é que todos os que estavam sentados no belo Teatro São João  ficaram com vontade de ir buscar os seus bonequinhos ao caixote e juntar-se àquela salganhada de urras e eufóricas narrativas da guerra, pela possibilidade de se sentirem crianças de novo.

Tudo é teatro. E nesta peça isso foi bem observável. Devido à densidade, a peça tem inúmeros pontos de foque a ocorrer paralelamente – e os olhos do público dançam constantemente, numa ginástica frenética, por não querer perder nenhum pormenor.

Além da geral originalidade, esta Tragédia foi também feita de pequenos pormenores: o microfone, onde decorrem os discursos eloquentes de César para a sua Roma, foi colocado sobre um caixote de lixo – que, se pensarmos, tem o mesmo formato de um púlpito. Além disso, o tempo concedido a cada movimento, a forma como os corpos se cruzam e a circularidade das ações pode ser sujeita a diferentes interpretações. Limpa-se um pedaço de chão, com vigor, imunda-se com chantilly, e volta-se a esfregar. No teatro pode-se tudo.

“Está genial a peça”: risos e comentários deste género são o que se ouve ao abandonar a plateia. Mas também muitas são referências à incompreensão e confusão dela resultantes. Sai-se da sala de cabeça cheia, numa reflexão sem um fim definido. “Acho que foi feita para não entendermos” – talvez sim, talvez não. O que é sim? O que é não? Ser ou não ser?

O melhor é não indagar demasiado e desfrutar do alheamento. Ou definir uma interpretação própria, claro. Uma coisa é certa: temos de nos deliciar, simplesmente, com o que tivemos o prazer de presenciar.

Artigo da autoria de Nina Muschketat

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version