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Cultura

ANTÓNIO PINHEIRO DA SILVA: “CONSEGUIR AFINAR BEM UMA COISA PARA NÃO SE DAR POR NADA É UMA ARTE E É UMA TAREIA”

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António Pinheiro da Silva

Por detrás de uma montra discreta, esconde-se um estúdio onde nasceram algumas das criações mais aclamadas da Música portuguesa. É no hall do Estúdio Vamusica, em Bragança, que António Pinheiro da Silva se senta para conversar sobre aquilo que nem sempre chega até nós quando paramos para ouvir uma canção. É entre ritmos e vozes que já não passam despercebidos, que se escondem algumas das figuras mais indispensáveis à criação musical, cujos nomes que nem sempre têm o protagonismo esperado quando refletimos sobre a relevância dos seus trabalhos.

É o caso de António Pinheiro da Silva que já há mais de 40 anos se dedica inteiramente à música e a fazer dela a sua arte. Sérgio Godinho, António Variações, Camané, Zeca Afonso, Lena d’Água, Madredeus e Rodrigo Leão são alguns dos muitos nomes que preenchem um currículo imensurável. São poucos os clássicos nacionais que não lhe tenham passado pelas mãos. O seu trabalho enquanto engenheiro de som permitiu-lhe atravessar toda uma era musical e estar lá não só para assistir, mas também para viver todas as suas mudanças.

 

Tendo em conta o seu trabalho com alguns dos gigantes da Música portuguesa, porque é que os portugueses fora do mundo da música não conhecem António Pinheiro da Silva? 

A isso não lhe consigo responder. Acho que é um problema [mais] relacionado com os portugueses propriamente ditos, do que comigo ou com a minha atividade. No meio [da Música] conhecem-me bastante, não paro de trabalhar mesmo já estando reformado. Tenho uma agenda louca, absurda para a minha idade. Portanto eu não tenho a ideia de que fora não me conhecem, ainda por cima dou aulas na ESMAE no Porto desde 1998, e dei também na Lusófona em Lisboa. Se bem que eu por natureza seja uma pessoa reservada e um bocado metida dentro de casa, porque também há um processo de investigação no que eu faço. Tanto o software, como agora a parte de criação de impulsos que estou a desenvolver mantêm-me fora do trabalho, metido em casa para desenvolver esses mesmos projetos, portanto eu não tenho muita tendência de “socialite”. Tenho tendência a fugir da “socialite” – graças a Deus e aos anjos todos. [risos]

Sente que as pessoas que contribuem para a música mas não estão na capa dos álbuns são injustiçadas por ficar por detrás dos holofotes, ou são os próprios que assim o preferem? 

Toda a gente que trabalha em Música sabe da importância do nosso trabalho, tanto ao nível criativo, como na influência psíquica. O que é que há, geralmente, quando um artista contrata um técnico? Confiança em quem está do outro lado a ajuizar, porque quando tu estás em performance num estúdio, tu não te consegues ajuizar a ti próprio- a  não ser que ouças e voltes a fazer, mas precisa-se, na hora, de ter alguém que está em cima daquilo que se está a passar. Neste caso, como eu fui músico, tenho uma grande capacidade de apreciar essas coisas. O que eu quero dizer é que há um trabalho que é deveras importante na parte da mistura. Muitos dos trabalhos que faço sou eu sozinho: mandam-me os trabalhos para casa e depois vão lá dar uma ideia ou duas. Já é assim um bocado solitário mesmo na chamada “tomada de decisão estética”. Isto são as chamadas condicionantes sociais da cena. Aqueles que têm os holofotes são os cantores, e na maioria das vezes são eles os piores músicos que estão dentro dos projetos. O frontman, ou a frontwoman, são quem transporta a palavra e por isso são quem fica com os holofotes. Ao longo da minha carreira, houve vezes em que os holofotes se chegaram a virar para a qualidade do som e das coisas que eu fazia ao ponto do diretor musical ficar altamente irritado por eu ter a atenção que supostamente era para ele – isto é da baixeza da qualidade humana. Eu fiquei muito desiludido ao longo da evolução do ser humano, que julguei que fosse sempre aprofundar as suas qualidades e acho que cada vez está pior. Acho que tudo o que é negativo no ser humano tem sido altamente amplificado com esta sociedade moderna que vocês vão viver, por isso estejam preparados que é horrível.

Fora de Portugal acha que se dá mais valor a essas pessoas?

Sim, penso que sim. Há o inverso da moeda: quando os produtores têm dinheiro, são eles próprios que contratam os artistas e que conduzem todo o processo. No meu caso, nunca tive dinheiro na minha vida, tenho é dívidas. [risos] Nunca iria pegar num artista, desenvolvê-lo e tirar-lhe os lucros do trabalho. Portanto, é natural que, face a este panorama internacional, os técnicos, que não são produtores e investem dinheiro não tenham tanta visibilidade. De vez em quando acontecem uns casos extraordinários que têm mais visibilidade. Não nos podemos esquecer que mesmo no caso dos estrangeiros só apanhamos meia dúzia de nomes, o que é pouco quando comparamos com a quantidade de artistas. De qualquer das maneiras, sou altamente respeitado e não tenho razão de queixa nenhuma.

Sabemos que as condições do estúdio influenciam a sonoridade da música. Nesta perspetiva, considera que o estúdio pode ser visto como um outro instrumento?

Sim, sem dúvida! O equipamento modela essencialmente as condições acústicas. O que manda mais ainda continua a ser a sala – ainda mais do que o equipamento. Tudo junto define bastante aquilo que se põe cá fora, basta uma pessoa estudar um bocadinho de física ou de acústica – que são ambas relacionadas. O estar dentro de uma sala pequena, onde temos imensas reflexões, influencia logo a qualidade sonora que se tem. De todas as maneiras, eu prefiro, sempre que me seja possível, trabalhar em salas grandes, porque numa sala grande a distância a que estão as paredes é enorme e há uma atenuação grande entre este vai e vem do som. Portanto, tento sempre evitar ao máximo as reflexões das paredes. Agora imaginem um cantor potente a gravar aqui neste sítio, isto é só reflexões por todo o lado. Ou uma bateria num sítio desta dimensão, uma pessoa acaba por ter mais energia refletida do que energia direta e é incontrolável, a qualidade do som já está completamente comprometida. O melhor é ser em espaços grandes, só não gravo ao ar livre por causa do vento, senão escolheria gravar no exterior, ou até em teatros. Qualquer coisa em que as paredes estejam suficientemente longe para não interferirem no processo. Tudo isto, juntamente com os equipamentos, modela bastante o resultado final. E disso não haja dúvidas. Algumas das maiores mentiras do mundo que a gente refere são: “o dinheiro não traz felicidade” e “Deus é omnipotente”. Nisto da música também há uma mentira que é: “isto resolve-se na mistura”. Claro que uma coisa que está comprometida de base, não terá grande milagre que a salve.

Sendo assim considera que o engenheiro de som pode ser considerado um artista, da mesma maneira do que um vocalista ou instrumentista?

Claro, absolutamente! Há uma parte do nosso trabalho que é, hoje em dia, com as ferramentas que temos, extremamente penosa. Eu até construí um site, com um amigo meu, que se chama “os latrineiros à hora”. Latrina porque o trabalho que fazemos é um trabalho de limpeza. Por exemplo, às vezes quando temos um baixo a tocar com uma viola e as notas nunca estão sincronizadas, tenho que as acertar todas, uma a uma, e afinar as notas do cantor. É a parte mais cansativa do trabalho. Eu até tento, às vezes, fazer isso em dias diferentes, porque já não estou com vontade criativa ao fim da tareia que levei ao afinar e acertar. É algo muito duro e cansativo. Depende sempre da qualidade do cantor ou cantora que se apanha. Antigamente, não era assim, não havia afinadores nem maneiras de se pôr as coisas no sítio. A tareia (..) era para nós e para o músico ao mesmo tempo. [risos] O que antes se fazia era repetir e repetir até estar bem. Às vezes aquilo era um autêntico massacre: começava-se a gravar um tema e repetia-se tantas vezes e faziam-se tantas correções que já não se sabia em que parte da música é que se estava. Era sempre um processo demorado e cansativo para o músico. Hoje em dia, temos a grande facilidade de poder dizer a um cantor que precisamos de regravar uma outra parte que não está bem em comparação com o resto. Isto permite uma grande melhoria da capacidade artística, mas não da vida do técnico, que leva um bocado em cima. Que não se pense que eu consigo fazer isto automaticamente, o processo de conseguir afinar bem uma coisa para não se dar por nada é uma arte e é uma tareia.  

Acredita que um engenheiro de som precisa de ter experiência prévia na área da música para fazer um bom trabalho?

Absolutamente. Em todas as escolas mais desenvolvidas, o ensino insiste na obrigatoriedade em se ser músico para fazer a parte técnica, senão um gajo referencia-se em quê? É o problema da sensibilidade: nunca se é só técnico, é-se também sensível e técnico ao mesmo tempo. Se não soubermos do que falamos, como é que nós temos uma hipótese de interlocução com os músicos? Não creio que no futuro vão existir técnicos que não tenham relação com a parte musical, porque todas as escolas já tentam que haja essa formação obrigatória. 

O gosto pessoal interfere no trabalho de técnico de música?

Absolutamente. Isto depois é um problema relacionado com quem manda. Ou há uma boa ligação entre as coisas e as pessoas conseguem trabalhar juntas, ou tem que haver alguém que decida para que lado é que se vai. Com tanto processador de som que existe hoje, tanto plug-in, tanta hipótese de se fazer tanta coisa, tem de haver alguém que dirija para onde é que o resultado vai. Mal de nós quando isso não acontece – isso é a loucura – quando uns querem puxar para um lado e outros querem puxar para outro e um gosta disto e o outro gosta daquilo. Houve uma altura, quando eu estava trabalhar nos estúdios Valentim de Carvalho, já tinha os músicos todos em cima da mesa, uns a mexer nos faders, outros a mexer nos equalizadores, outros a mexer nessas coisas todas. Eu não fiz mais nada: levantei-me e fui-me embora. Deixei-os sozinhos. Eles, que eram inteligentes, perceberam a mensagem: no outro dia já só havia dois e eu para haver o desempate. Toda esta possibilidade da decisão estética ou está na mão de um produtor, ou está na mão de um artista propriamente dito, ou fica na mão do técnico.

Qual foi o artista com a ética de trabalho menos ortodoxa com o qual trabalhou? Tem alguma história sobre um ritual curioso de um músico com quem colaborou? 

Sim. Em termos de processos criativos, com o Pedro Ayres. Trabalhávamos de maneira bastante interessante e diferente. Ele tinha a preocupação de me fazer o approach das coisas que queria por um processo filosófico. E nunca mais me esqueci de uma frase que ele me fez ler na altura antes de começarmos a misturar que era: “limito-me a dizer que há uma fonte, melhores ouvidos que os meus a descobrirão pelos seus rumores”. Isto era uma cena filosófica, creio que budista. Acho que é um princípio de transmissão fantástico. Ele tinha a preocupação de haver um approach filosófico e havia bastante nos Madredeus. Ele como diretor tinha sempre essa preocupação quando trabalhava comigo – que foram muitos anos, muitos espetáculos, cerca de uns mil espetáculos feitos juntos. Na altura já nem sabia em que país é que acordava, nem com que língua teria que falar para a senhora da receção. Fazíamos muito trabalho na altura, era outra fase. Agora já é tudo muito mais complicado. 

Antigamente, nós evoluíamos porque trabalhávamos sempre com a mesma equipa, era tudo feito em turnês. Turnês de 15 espetáculos, turnês de 20, às vezes até mais. Sempre com a mesma equipa era um processo de evolução. Agora já não se passa isso por razões económicas e por este avanço desenfreado do neocapitalismo, em que tudo está centrado no tostão, em que uma pessoa está sempre a mudar: ou já não temos a mesma equipa, ou no dia a seguir já trabalhamos com outro equipamento noutro sítio. Portanto, esse processo evolutivo de melhorar porque se está com as mesmas condições, o mesmo equipamento e as mesmas pessoas, perdeu-se completamente. Hoje em dia, é chegar lá e defrontar com o que há. A maneira como toda a gente sabia trabalhar numa mesa analógica era uma coisa de alta velocidade, agora com as mesas digitais todos os dias apanho uma diferente. Portanto a primeira fase da minha vida como técnico é aprender a mexer na porcaria da mesa [risos], quer dizer que a minha capacidade de performer baixa imenso. É inevitável. “Ah, estas coisas não se mexem bem. Ah, onde é que está o equalizador?” Não pode haver esta cena. Se eu estou a sentir alguma coisa durante o espetáculo, eu tenho que lançar a mão imediatamente.

Há algum disco que lhe deu especial prazer em trabalhar? 

Muitos, tive muitos discos. Adoro trabalhar com o Zé Mário Branco. É uma pessoa que tem um respeito extremo pelos outros. Eu adoro trabalhar com ele em muitos projetos. Agora, ultimamente, foi a Cátia Guerreiro. Foram os discos todos do Camané. Foi o disco dele [José Mário Branco], como produtor. Nunca eu vi um respeito tão grande pela própria pessoa – o que nos ajuda a trabalhar o melhor possível. Também tive muito prazer com o Fausto. Lembro-me perfeitamente dos grandes pecados que a gente passava em estúdio, na nossa intimidade. Porque aquilo acabou mesmo por ser uma intimidade porque ele não queria mais ninguém no estúdio – era eu e ele. Havia então aquela empatia de querer melhorar e lembro-me perfeitamente. 

Por exemplo, o António Variações foi um desses casos. A maior surpresa que eu tive em trabalhar com ele foi descobrir a resistência daquele homem. Aliás, ele refere bem a personalidade dele num dos temas em que diz que “A culpa é da vontade/ Que vive dentro de mim/ E só morre com a idade/ Com a idade do meu fim”. Isto é lindíssimo e ele era assim. Eu lembro-me de estar no estúdio e de ele não ser um cantor afinado. Nós tínhamos que tentar apanhar o melhor bocado dele, começávamos a gravar com vozes às 10 da noite e às 7 da manhã já estava eu com vontade de cair para um lado e o António ainda dizia: “eu repito isso tudo se vocês acharem que sim”, sempre com aquela vivacidade e aquela genica. E ele não tomava nada, não se drogava, não fazia nada dessas coisas para ser assim. Porque essa genica numa pessoa dura dois ou três dias e a seguir vai para o hospital – ou é algo físico, ou é da maneira de ser.

Sabemos que já fez alguns trabalhos em que pega em clássicos portugueses e cria novas versões para as canções, como fez em “O Irmão Do Meio”. Posto isto, gostaríamos de perguntar se há algum limite no reaproveitamento destas peças? Até que ponto um clássico pode ser alterado?

Não, eu acho que se deve recriar tudo, até porque hoje há outros conceitos e outros meios técnicos. Houve muitas músicas que em recriação ganharam imenso. Ainda me lembro de ouvir com bastante gosto uma canção cantada pela Manuela Moura Guedes que foi depois alterada por um grupo português, que lhe adicionou uma batida e lembro-me de achar que aquilo estava recriado de uma maneira bastante mais interessante que o original. A Lena D’água também fez recriações muito interessantes de alguns temas do António Variações. Eu acho que isso é aconselhável e é uma coisa que vai mantendo a cultura presente. Em vez de estarmos a fazer sobre estrangeiros, podemos estar a fazer sobre portugueses.  

A música portuguesa tem sofrido mutações ao longo do tempo, uma prova disso é o novo álbum de Lena D’água que nos apresenta uma nova versão da cantora. Quando olha para o que a música portuguesa era no início da sua carreira e para aquilo que é agora, sente que houve uma evolução positiva? 

Eu acho que houve uma evolução positiva a nível dos músicos. Tocam muito melhor hoje em dia do que no meu tempo. Isso é fruto das coisas dos conservatórios, dos professores novos que apareceram. Os músicos são melhores e as técnicas evoluíram. Aquilo que se ganhou foi transmitido para as pessoas e hoje em dia já se tem maneira de estudar. No meu tempo, eu era autodidata. Agora, com bastantes professores, a qualidade da própria pessoa aumentou, musicalmente melhorou muito. E as pessoas têm que olhar para a originalidade da seguinte maneira: hoje em dia, há milhões de coisas já feitas. Quanto mais se faz, mais difícil é ser-se original. Mas é por inerência, não é que não haja energia criativa. Há tanta coisa feita e há tanta hipótese de se fazerem coisas absurdas, só com ruídos ou coisas do género para se ser diferente. E o ser-se diferente só para se ser diferente nem sempre dá bons resultados. É bastante mais interessante o querer ser-se melhor, não obrigatoriamente ser-se diferente. Isso é uma luta consigo próprio e é uma das coisas em que se vale a pena investir.

Há algum artista com que queira colaborar de novo? 

Com praticamente todos, tirando aqueles que já não estão cá. Eu deixei muito boa relação com as pessoas. Gostava imenso de voltar a trabalhar com o Rodrigo Leão. Fui produtor do primeiro disco dele e gostei sempre muito de trabalhar com ele. O Rodrigo Leão foi uma pessoa incrível. Quero salientar que me deu 10% dos direitos de autor desse álbum pela produção e execução musical. Nunca ninguém fez isso. Vou continuar a trabalhar com o José Mário Branco e gostava de voltar a trabalhar com o Fausto. E há muitos na cena, até os UHF, os GNR e essa malta toda. Era mais novo e estava mais na cena do Rock. Hoje em dia, estou mais naquela posição de dizer “too old to rock’n roll too young to die”. [risos] Até porque já não gosto de ouvir grandes pressões acústicas, e nunca gostei. E se ainda faço som aos 69 anos de idade é porque poupei os ouvidos durante a minha vida profissional. Foram muitas horas a levar com som e a idade retira capacidades auditivas. Quando os músicos queriam ouvir muito alto, eu saía da cabine. Por exemplo, eu sempre consegui trabalhar na minha casa, que é um andar normal. Se estivesse a ouvir as coisas muito alto era corrido, já ninguém me aguentava. [risos]

Outra pessoa com quem eu adorei trabalhar, que já não está cá, foi o Bernardo Sassetti. Eu adorei, adorei! Foi quando gravou o álbum com o Carlos do Carmo, com piano e voz, e depois um violoncelo e um clarinete. O Mário Laginha e a Maria João que eu me lembro uma vez ter feito um concerto incrível, num país de primeiro mundo, com uma orquestra fantástica que foi o “Lobo, Raposas e Coiotes”, em Stavanger. Nunca mais me esqueço desse concerto épico e de uma facilidade característica de um país de primeiro mundo. Há muitos, muitos, e agora se fosse recordar tudo o que já fiz, gostava de trabalhar com todos os [músicos] que pudesse.

Da banda do Casaco até ao esquadrão da Príncipe Discos, a posição do António é um miradouro discreto para todas as eras que atravessam a música portuguesa. Está lá antes de bolhas que rebentaram; esteve lá para firmar discos emblemáticos como o Dar & Receber ou o Independança. Quantas vezes o seu radar acerta no que vai (ou não) mudar o panorama nacional?

Isso é ao contrário: eu sou escolhido, não sou eu que escolho. Não tenho qualquer tipo de noção, nunca tive! Não me relaciono rigorosamente nada com isso, porque o êxito é das pessoas. Já assisti a várias situações de discos até, tecnicamente, mal executados e que tiveram um sucesso tremendo. Portanto, nem é um muito bom som que faz um disco ter sucesso, nem é o estar bem executado que traz isso [o sucesso]. Dou-vos a minha palavra de honra. Isso é uma coisa muito mais profunda relacionada com o gostar das pessoas. Elas é que fazem o sucesso dessas coisas, não é o contrário. Imaginem se nos atirarmos para a música pimba: observamos que há determinada classe cultural que aprecia aquilo, então não se foge dos acordes perfeitos, nem se introduz qualquer tipo de variância. As pessoas não querem variância, querem uma coisa que se assemelhe. Então aí é mais fácil prever se uma coisa terá sucesso ou não. Mas eu quero dizer que ao longo da minha vida nunca me consegui relacionar com essa história do sucesso. Eu sempre me relacionei com o fazer o melhor possível ou atingir um grau de excelência nas coisas que se faz. (…) 

Houve quem teve sucesso e me chamasse depois para trabalhar com eles, por exemplo Madredeus. Eu não estive no primeiro disco deles. Foi gravado diretamente para fita, portanto nem sequer misturado a sério foi. E tiveram uma aderência… Ainda me lembro de um senhor da promoção me dizer: “O que é que eu vou fazer com estes? Com estas ideias malucas que me aparecem na mão? Com uma gaja a cantar que parece uma cabra?”. [risos] E eu a ouvir isto e a dizer: “O quê?”. Isto era um promotor a dizer uma coisa destas. O que eu quero dizer é que assim que aquilo [primeiro álbum de Madredeus] apareceu na rádio, foram as pessoas que o puseram cá em cima. Se bem que se possa filosofar muito sobre o que é que vai ter sucesso ou não. Já ouvi muita coisa sobre pessoas que têm talento para detetar o que vai ter sucesso. Eu não, nem sei, nem prevejo, nunca acertei em nada.

Então quer dizer que, por exemplo, que quando trabalhou no “Dar e Receber”, não previu o sucesso que o álbum ia ter?

A história do António Variações é verdadeira, menos aquela que está romanceada. Ele estava completamente posto de lado. A grande força de vontade e um irmão advogado foram quem conseguiram o contrato que lhe permitiu começar a gravar. Eu ainda toquei nisso e fiz o solo no maxi single do “Povo que lavas no Rio” e no “Estou além”. Portanto, quando eu entro para gravar o primeiro maxi single, quando o vejo e ouço pela primeira a voz dele, viro-me para o produtor e digo: “Ouve lá, só me trazes é disto!”. [risos] Um gajo está à espera de uma voz bonita e não sei que mais… E aí pode dizer-se que ele era um comunicador carismático e com uma energia incrível e isso valeu-lhe o lugar que tem. Não pela aptidão musical. Há pessoas que não têm essa aptidão, mas têm coisas que ultrapassam isso. E isso é algo que deixa uma certa mensagem. No caso dele é mesmo uma lição: a vontade passou por cima da aptidão. Portanto ele era para ser mesmo despachado, mas o poder da música que ele fez e aquilo que ele dizia, como aquela expressão que eu ainda hoje aplico em todas as situações da vida de “só estou bem aonde eu não estou, porque eu só quero ir aonde não vou”. Essa insatisfação, muito característica do ser humano, essa parte filosófica, junto com o aspeto dele é que o fez ser quem é. Imagino o que era hoje em dia com esta bronca toda que houve com as saias do Parlamento, da qual eu tenho vergonha… O António Variações, da maneira como se vestia, aparecer no Parlamento. [risos] 

Hoje em dia, a música chega principalmente às pessoas através de streaming. Sabendo que trabalha todos os dias para obter um certo nível de qualidade sonora, como é que isto o faz sentir?

Mal, horrivelmente mal. Ou seja, eles querem é números hoje. Fiquei altamente perturbado quando as amigas da minha filha, e mesmo ela, me disseram que nunca tinham comprado um CD, ou um vinil, se bem que o vinil seja muito pior por causa dos ruídos. Eu depois dei à minha filha uma coisa de alta qualidade, porque elas estavam habituadas a ouvir MP3 de baixa qualidade. Ela, que tem sensibilidade musical disse-me: “Estive a ouvir as músicas e ouvi muitas mais coisas a acontecer do que tinha ouvido antes”. Parece que tudo se degrada por causa do dinheiro. Se antigamente a gente se atirava contra as editoras por elas controlarem isto, hoje é muito pior. Os artistas não ganham nada. Com o streaming nem se sabe quem é que ganha. Todas estas superestruturas capitalistas dominam tudo e põem as coisas em má qualidade. Hoje em dia há conhecimentos para se ter tudo muito melhor. 

Dou-vos um exemplo dramático do que é o problema do dinheiro: antigamente fazíamos as coisas de orelha, mas tínhamos tempo. Começávamos a montar cedo para ter tudo preparado para fazermos o melhor espetáculo possível e hoje temos aparelhos de medida para ter uma excelência naquilo que se entrega às pessoas. Eu tenho de chegar muito mais cedo que os outros músicos, mas para se poupar dez tostões, não posso viajar na carrinha dos técnicos para chegar lá mais cedo. Para poupar uma carrinha, fazem-me chegar às cinco da tarde para ter um espetáculo pronto com a abertura das portas às oito da noite. Assim, eu passo por cima de não sei quantos rigores, o que me deixa tristíssimo e furioso. Ou seja, é andar para trás em vez de se aproveitar o conhecimento que temos hoje. É mesmo sujar um chão limpo, e isso é terrível. 

Na era do streaming, cada vez mais o artista recebe menos. As pessoas não compram tantos discos e uma das poucas maneiras de ganharem dinheiro é com tours.

Hoje em dia, quando as editoras assinam contrato com um artista querem percentagem do concerto. Eu sei de artistas que tiveram muita dificuldade a arranjar editora porque não cediam a isso. Se eles não fazem nada pela história do concerto portanto porque é que ganhariam dinheiro com isso?

Sente que as editoras de discos vão perder poder no panorama atual?

Claro. Hoje em dia já não se vende música. O pessoal vai à net e descarrega [os ficheiros], mesmo que tenham má qualidade. A partir do momento em que se inventou o digital, em que se faz uma cópia igual ao original, nunca mais houve hipótese de competir. Ter-se-á que ir por outros caminhos para compensar o valor dos músicos. Devia ser feito algo a nível estatal, para saber quantas vezes é que um artista é ouvido. A questão é que não há maneira de recompensar os criativos: se não se vendem cópias físicas, como é que a Sociedade Portuguesa de Autores paga aos artistas? Não paga. Se não há viabilidade económica na música, então isto tem de ser feito pelo lado amador, pelo gosto das coisas. 

Quer acrescentar alguma coisa?

Gostava de pedir a todos meus colegas que lutassem pela excelência do nosso trabalho. É que a excelência no trabalho dá trabalho. [risos]

 

Artigo da autoria de Francisca Gomes e João Norte

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