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Cultura

SAM THE KID: A PERFEITA REPETIÇÃO NA RETROSPETIVA DE UM AMOR PROFUNDO

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Coliseu do Porto, sala esgotada (e, claramente, cheia). Noite do dia 8 de novembro, ouve-se Napoleão Mira, poeta e pai de Samuel, também conhecido como Sam The Kid, a entoar “Entretanto”.

“A Partir de Agora” é a canção que se segue e não podia ter sido mais adequada, pois desse momento em diante, o espetáculo desenrolou-se durante quase duas horas. Foi um concerto intenso, em que as expectativas do público, ansioso, desde julho, por este espetáculo, foram mais do que cumpridas.

Sam não deixou o público descansar por um segundo. Evidência disso foram os aplausos e os gritos constantes. Mas o artista não se encontrava sozinho em palco – aliás, estava cheio. Junto dele, os também “seus” Orelha Negra – dos quais são membros integrantes, para além do rapper, DJ Cruzfader nos pratos, Fred Ferreira, Francisco Rebelo e João Gomes.

Para além da banda, ainda se ouvia David Cruz e AMAURA nos coros, bem como a orquestra de 24 elementos conduzida por Pedro Moreira. Esta foi uma das características mais diferenciadoras, se não mesmo a mais diferenciadora, do espetáculo, porque o grupo acompanhou todas as músicas numa combinação que não era, aparentemente evidente, mas que resultou bem.

Ao longo do espetáculo – que foi tanto sonoro como visual – Samuel contou também com a presença de outros  convidados. “Juventude (É Mentalidade)” trouxe ao palco NBC. A música “XEG e SAM”, pela segunda vez ao vivo (a primeira foi no Coliseu dos Recreios, no concerto anterior), contou com XEG e Sanryse. SP subiu ao palco no momento de “Os Negociantes” e, juntamente com Carlão, interpretaram “O Crime do Padre Amaro”.

Tudo isto sem ignorar, obviamente, a presença permanente de Mundo Segundo em palco, que deu apoio vocal e com quem se fez ouvir “Gaia Chelas” e “Tu Não Sabes”, duas das muitas músicas resultantes da colaboração entre os dois amigos.

Os que já não estão cá fisicamente também não foram esquecidos. Houve espaço para homenagear GQ, Snake e Beto di Ghetto, já falecidos. Mas Sam fez questão de mostrar que enquanto estiver vivo, eles também estarão. O avô de STK (cuja voz entrou em temas de Samuel) também apareceu, em vídeo e em som, num tributo do neto orgulhoso.

Poetas de Karaoke levou o público ao rubro, mas o final apoteótico foi “Sendo Assim, primeiro tema a solo de Sam the Kid, e música que integra a compilação de 2018 de Samuel, Mechelas. Bastou ouvir-se os primeiros sons do beat, para se escutarem os gritos generalizados. No fim, já só se ouvia, em repetição, “Sam The Kid”. Uma sensação que se imagina incrível para um poeta que está sempre “À Procura da Perfeita Repetição”.

Foi uma noite de “Retrospectiva de Um Amor Profundo”, citando um dos temas de STK. A “16/12/95” (música também conhecida como “Sofia”) a vida de Samuel Mira era, certamente, diferente, mas, a 16/12/19, e como o próprio disse, algo permanece igual: o rapaz de Chelas tinha os mesmos princípios que o homem de 40 anos continua a ter.

Sam The Kid tem um lugar no pódio da história do hip-hop português e, isso, tempo nenhum mudará.

 

“Sendo Assim, a cena sai, sem pressões”. Agora, sem pressões, porquê este regresso em nome próprio aos palcos?

Em nome próprio, teve mesmo a ver com a música “Sendo Assim”. Estava no carro a ouvir a música e deu-me o clique de a imaginar com orquestra e, depois, a partir daí, comecei a imaginar mais músicas e como é que seria. Falei com o Vasco (Sensi), que também está a produzir com a FADED, e perguntei onde é que seria o melhor sítio.

Então, o ponto de partida foi a música “Sendo Assim”, e agora estamos aqui. Já fizemos o primeiro espetáculo, que correu muito bem, foi mesmo muito memorável e agora estamos aqui, no Porto, a tentar replicar essa sensação.

 

O que é que o Porto te traz? O que é que sentes quando estás cá?

Traz-me grandes recordações. É o sítio, a nível de público, onde encontrei as primeiras pessoas que gostaram do meu trabalho. Aquela coisa mais típica de sentires um público fã. De sentir que o público se estar a celebrar, a divertir e a deixar-se levar pelas músicas. Em Lisboa, nos anos 90, era um pouco mais hostil. Eram mais pessoas, rappers a verem rappers- 

Atualmente, já é diferente. Não posso deixar de mencionar que no Porto foi a primeira vez que senti essa sensação das pessoas já estarem mais disponíveis para descobrirem coisas e celebrarem de forma bastante eufórica, principalmente no Hard Club – no antigo, e depois também no novo. Em geral, têm sido aqui no Porto, nas vezes que tenho tocado com o Mundo [Segundo], os concertos mais memoráveis.

O ano passado, por exemplo, demos um concerto, no Jardim do Morro, que foi dos melhores concertos. Tivemos grande sensação de público. Sentes-te mesmo em casa. E estando com o Mundo, ainda ajuda mais. Mas mesmo que não estivesse, sabia que ia ser bom na mesma. O D’Bandada também foi memorável.

 

Tantos anos depois, tantos novos fãs, as pessoas entoam as tuas músicas de cor, dão-te energia e têm carinho por ti. Como é que é lidar com isso? Como é que te sentes com o título de “Rei do Hip-Hop português”?

Sinto-me bastante grato e nunca banalizo esse tipo de situações. Há pessoas que dizem “eu sei já estás farto de ouvir”, mas não, nunca é de mais. Ouço bastantes vezes elogios que me deixam lisonjeado, mas nunca os tomo em consideração como uma coisa já banal. Eu tenho noção dessas coisas. Mas também tenho noção, às vezes, da efemeridade de certas situações.

Não me deixo deslumbrar com “tenho o teu coração para sempre”. Sei que, em alguns casos, isso pode acontecer, mas há uma percentagem que diz “quando era mais novo até te ouvia, mas agora gosto de outras coisas”. E podem ter ouvido até por uma certa moda. Eu também já fui vítima disso, cheguei a fazer surf por moda.

 

Através dos teus vários projetos e colaborações, dás apoio a caras novas e a pessoas que vão surgindo. De onde é que veio essa paixão de querer mostrar aos outros novos projetos?

Eu acho que isso já é uma coisa que está no DNA da própria cultura. O rap tem esse clichê. Eu, se calhar, exagero um bocado, mas é comum um rapper dizer numa música de que zona é que ele vem. E, se calhar, uma pessoa que faz outros géneros musicais não vai dizer. Pode haver exceções, mas não é tão comum.

No rap é normal a colaboração em quantidade, e isso não existe tanto nos outros géneros musicais. Eu quero essa quantidade de colaborações, eu quero mesmo fazer coleção de colaborações, por assim dizer. [Quero] que se diga um nome e eu diga “eu tenho uma coisa com ele” – seja da minha geração, seja mais recente. Gosto muito disso, vou conhecendo os estilos de cada um. O meu naipe de cores e de instrumentais vai a tantos sítios. E, se calhar, eu tenho instrumentais em que ainda ninguém pegou, mas assim há um certo artista que pode pegar.

Se só pudesse trabalhar com um artista ou dois nem todos os meus instrumentais conseguiriam ver a luz do dia, porque eu tenho bastantes instrumentais que, enquanto artista rapper, não são para mim. É uma estupidez dizer isso, porque eu podia rimar em qualquer beat meu. Mas, se calhar, ficam mais adequados a certas pessoas. Então, é isso, como sou bastante versátil consigo experimentar com certas pessoas, certos projetos.

As pessoas podem dizer que é generoso da minha parte, mas não. Também não é egoísmo, mas é bom para os dois lados, porque, se calhar, de outra forma, as coisas não veriam a luz do dia. Iam ficar na gaveta.

 

Os teus instrumentais têm seguido uma linha não muito agressiva. É por ser uma nova fase na tua vida onde tens mais maturidade ou por estares numa fase mais equilibrada? 

É uma boa cena. Mas posso ter uma mais agressividade, não tão chill, por assim dizer, porque, às vezes, aquelas que são mais power, tornam o desafio maior, para o rapper brilhar. Por acaso, a música que estou a escrever neste momento, com os GROGNation, também é para o power, por isso, nem está a ser assim muito fácil.

A minha cena é ser livre. Mas, aquilo para que tenho tido tendência é ir para o minimal, exatamente para o texto brilhar cada vez mais.

 

“Eu não sou esquisito nos beats / Qualquer beat me puxa”. Essa perspetiva mudou?

Hoje em dia, sou o contrário disso. Mas, nessa fase, era um bocado o show-off de “dá-me qualquer beat que eu rimo”. Eu lembro-me que, quando eram cenas de free-style e um DJ punha um beat, era embaraçoso, mas eu não pedia para mudar o beat, [porque] era embaraçoso.

Mas, hoje em dia, para uma música minha me puxar para escrever, diria que sou esquisito.

Vejo pessoas que fazem instrumentais dos quais gosto bastante a mandarem-me para ver se aparece aquele beat para eu rimar – e estamos a falar de outros produtores, como o Stereossauro, Holly,  DJ Caíque – e são grandes beats, mas, às vezes, não me vejo ali.

Não existe uma receita para me conquistar nesse aspeto. Tenho algumas cenas em stand-by, mas é um bocado difícil dizer qual é a cena que me cativa. É uma incógnita.

 

Para quando a reedição dos álbuns em vinil? Na biblioteca Almeida Garrett há lá alguns em CD, como o Beats Vol 1: Amor.

Ainda não há data, mas estou a tratar disso. Tive um grande stress em relação a isso, porque, além do vinil, quero também em CD. A cena é que está caríssimo para as pessoas e quero banalizar e dar acesso por um preço normal.

Não quero dizer “está aqui tudo”, porque isso também é muita confusão. Eu prefiro dar atenção a uma coisa que já saiu, mas com uma reatenção individual. Não é só dizer “já estão à venda os quatro álbuns, escolham.” Isso não é muito inteligente. Da mesma forma que eu também não sou muito a favor de quando se lança dez videoclipes no mesmo dia. Prefiro “vê este videoclipe hoje, daqui a umas semanas sai outro”.

 

Pretendes reeditar todos em CD e em vinil?

Até agora, aquilo que eu idealizo é Pratica(mente) e o Beats Vol 1  em vinil e em cd, – e quero fazer por esta ordem. O Entre(tanto) e o Sobre(tudo) faço em CD, no matter what.  Mas o Sobre(tudo) é questionável se faço em vinil ou não. 

Saiu há pouco tempo a notícia de que o vinil já superou o CD… mas não se tem vendido nada. Quem compra os vinis, em grande parte, é a comunidade audiófila – que preza bastante a qualidade sonora, e a masterização específica de vinil. Daí a minha questão: o Entre(tanto) não tem uma qualidade merecedora de um audiófilo ouvir em vinil, não vai ganhar nada. Por outro lado, não me posso esquecer de uma grande percentagem que só quer ter o objeto. É só um objeto quase de coleção, nem é pela audiofilia ou qualidade sonora.

Só me rendi agora às plataformas digitais, porque as pessoas ouvem assim. Eu, antigamente, fazia as coisas em função do meu eu enquanto consumidor, e isso é errado. A minha visão, agora, é dar às pessoas aquilo que elas querem, se vir que é viável. Mas se for uma coisa que  vejo que também não faz sentido nenhum e que só uma pessoa é que vai comprar, também não faz muito sentido. Mas se for uma cena que vejo que vai ter alguma procura, sim.

 

O que é que o Sam de agora, de 40 anos diria ao rapazinho de Chelas que começou no hip-hop, se pudesse falar com ele diretamente?

Dizia que está muito orgulhoso de tudo. Uma pessoa quando é mais nova tem uns certos princípios, porque não tem contas para pagar. Mas a cena engraçada é que eu, agora, com 40 anos, sinto que continuo com os mesmos princípios.

Nesse aspeto de integridade, estou intacto. Até digo isso, na música “Sendo Assim“: o princípio do início ainda se mantém ileso. Os princípios que eu tinha no início ainda não foram quebrados. E ainda tenho bastantes planos – plano b, plano c, plano d, para não comprometer a minha situação, e não fazer certas coisas.

 

Tens planos para a vida toda e para além-vida também. 

É verdade.

Artigo da autoria de Francisca Costa, co-produzido com Diogo Maia 

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