Cultura
JUP RETROSPETIVA 2019: CINEMA
Joker
Joker é um dos filmes mais controversos do ano e certamente o mais divisivo. Medo do filme poder inspirar atos violentos não o impediram de quebrar recordes da bilheteira. Em Portugal, foi o segundo mais visto do ano, à frente de Endgame e outras ofertas mais amigáveis à família.
Um filme estrondoso, um retrato duro de mentalidades e vicissitudes da sociedade ocidental do século XXI. No centro está a interpretação magnífica de Joaquin Phoenix. A metamorfose poética do ator transmite a inocência incompreendida, a dor reprimida e, eventualmente, o caos libertado de Joker.
Todd Philips e Joaquin Phoenix criaram uma obra-prima numa altura em que o Cinema mais precisava. Os colossos de bilheteira parecem pequeninos, em comparação.
Joker é um espelho desconfortável. Isto tanto se pode referir ao filme ou à personagem. Talvez seja por isso que alguns não queiram olhar para o seu reflexo e outros que olham só consigam esboçar um sorriso amarelo.
Parasite
O mais recente filme de Bong Joon-ho é a sua obra-prima. O seu sucesso reflete isso: Grande vencedor da Palme d’Or deste ano e um dos grandes candidatos, senão o maior, à glória nos Oscars.
Parasite é um filme fiel às suas raízes sul-coreanas que transmite uma mensagem universal. A luta de classes e a falta de compaixão dos mais ricos pelos mais pobres formam a base para uma montanha russa emocional com um fim imprevisível.
O maior mérito de Bong Joon-ho é conseguir alterar, constantemente ao longo do filme, as regras do jogo. É complicado definir Parasite num género, já que a obra explora tanto vertentes cómicas como dramáticas.
O cinema asiático volta a quebrar barreiras linguísticas e culturais para provar, de novo, que o Cinema é um meio artístico capaz de nos unir à volta de dilemas transversais a toda a Humanidade.
Variações
Como em todos os sectores da pop culture, há filmes que sobem ao pódio das tabelas de popularidade e isso não significa exatamente que arrebatam os quadros de excelência e qualidade. Quando a escala é Portugal, um país rico em cultura mas pobre na sua procura, os filmes mais vistos são alvo de análise ainda mais atenta. No caso de Variações, uma produção que esperou uma década por se ver nos grandes ecrãs, justifica-se que tenha sido o filme português mais visto de 2019.
Já era urgente uma homenagem a um dos artistas mais irreverentes e queridos – ainda que postumamente – dos portugueses, e foi mesmo no ano em que António Ribeiro faria 75 anos (faleceu há 35) que teve o seu merecido pedestal. Uma homenagem essa “bonita e decorosa, sempre a jogar pelo seguro”, que nos fala do António de Fiscal, tanto menino como homem feito a cantar para a mãe, a sua maior inspiração a seguir a Amália, mas também do António barbeiro em Amesterdão a fazer pela vida, e o António de volta a Lisboa a lutar por gravar a sua própria música, essa sempre mais que um neo-folclore, mais que ele próprio até, pois acima de tudo, a sua música esteve muito à frente da sua época e continua a ser única.
Sérgio Praia contribui em larguíssima parte para a energia desta longa metragem, dando corpo, alma e voz ao barbeiro que era músico (ou era ao contrário?). João Maia, ainda que de forma abstrata, mostra-nos a transformação self-made de António em Variações através dos seus temas menos conhecidos, mas mais importantes para a história da sua vida – mais uma prova de que a popularidade e a qualidade nem sempre andam de mãos dadas.
Once Upon a Time in Hollywood
Era uma vez um actor de westerns esquecido pela indústria, Rick Dalton, o seu duplo e fiel companheiro, Cliff Booth, e a célebre actriz Sharon Tate, no auge de Hollywood, em Los Angeles, 1969. Tudo promete uma viagem alucinogénica pelos gloriosos anos 60 do cinema americano. Quentin Tarantino espelha não só a época, como a indústria cinematográfica, com uma precisão paradoxal: cruel na sua autenticidade e satisfatória no imaginário “do que poderia ter sido”.
Por entre as bocas de sino e padrões neón emerge um sonho – o de realização artística num mundo onde os westerns já não têm lugar e as estrelas do Hollywood antigo são cadentes. As peripécias para concretizar esse sonho atuam como a ação principal de Once Upon a Time in Hollywood. Contudo, são muitas as referências da cultura, e de acontecimentos reais, plantadas por Tarantino que atravessam a narrativa e criam a desconfiança de que poderá haver algo mais.
Ironicamente situado na década da paz e do amor, preconizados pelo emergente movimento hippie, Once Upon a Time in Hollywood incorpora duas narrativas paralelas bastante agressivas, que se cruzam inesperadamente. Aquilo que aparenta ser uma história sobre a indústria cinematográfica e o falhanço artístico de Rick e Cliff, rapidamente se desenvolve num retrato utópico de um assassinato – o famoso ataque à casa de Sharon Tate por Charles Manson e o seu culto.
Trata-se de um clássico Tarantino: a violência e a comédia evoluem drasticamente de mãos dadas ao longo da ação, de forma não-linear, e com uma banda sonora extraordinária a acompanhar. Quando parecia não poder ficar mais intenso, a história envereda por um caminho sinuoso e damos por nós perdidos e, ao mesmo tempo, perplexos com a resolução da intriga.
Com esta capacidade de prender a audiência ao ecrã, expectante e insegura, Quentin Tarantino, Leonardo DiCaprio, Brad Pitt e Margot Robbie merecem todo o destaque deste filme no JUP Retrospetiva de 2019.
Guava Island
Combinado o talento de Donald Glover com o de Robyn Fenty, ambos conhecidos pelos seus nomes artísticos – Childish Gambino e Rihanna, o resultado só poderia ser mágico.
Guava Island não é apenas um filme, é um retrato da realidade de muitas pessoas, e uma crítica social a uma sociedade opressiva, capitalista e extremista. No mar de películas aclamadas este ano é fácil esquecermo-nos deste musical que, parecendo que não, saiu em abril de 2019.
O filme conta com a direção de Hiro Murai, roteiro de Stephen Glover e fotografia de Christian Sprenger, todos envolvidos na produção da série Atlanta, que destacou a faceta interpretativa de Donald Glover. Falava-se de intenções, mas nada era certo. Soube-se apenas que teria ido para Cuba com Rihanna gravar um projeto secreto. O resultado final surpreendeu qualquer um. Não tinha como objectivo principal fazer dinheiro, mas sim passar uma mensagem, o que justifica a divulgação do filme despercebida, fora dos canais mainstream, e todo o secretismo nas gravações.
São 55 minutos, filmados em película 16mm, com um formato de tela perto do quadrangular, repletos de simbolismo e destaque musical. Trata-se de uma concepção singular no mundo do cinema, e de grande valor estético. Guava é uma ilha fictícia, alegoria do paraíso: tem traços de cidade africana misturada com cultura latina caribenha, é pintada com as cores mais vivas e os padrões mais atrativos, e fala por vários dialectos e línguas. São imagens munidas de vida, energia e vigor, de natureza intocada pelo homem, mas cuja população vive pisada por um opressor.
O enrendo é bastante simples, por mais que aborde conceitos complexos. Um jovem artista quer fazer um festival para libertar, por um dia, a população de Guava da opressão que vive no trabalho exploratório. A ilha produz uma seda azul, única no mundo, e o maior explorador, e empregador, força-os a trabalharem sete dias por semana. Com o poder da música, do amor e da união, o protagonista, Deni Maroon, quer devolver a alegria e liberdade à vida da população.
Ultimamente, consegue concretizar esse sonho, apenas não da forma em que o idealizou. A ilha paradisíaca pode ser fictícia, mas a incongruência social e política retratada é bem real e vivida em muitos países.
Tristeza e Alegria na Vida das Girafas
Ainda à escala portuguesa, este é daqueles filmes que não sabíamos que precisávamos de ver até o vermos. Por mais ou menos dígitos que as velas no nosso bolo tenham, a criança dentro de nós, com todas as suas questões pulsantes e inocentes, permanece.
O filme de Tiago Guedes, com argumento dramático de Tiago Rodrigues, retrata “os passos em direção ao fim da Inocência” através de Girafa, a misteriosa e magnética personagem principal, interpretada pela jovem Maria Abreu, filha do realizador. Ela e Judy Garland, o seu urso de peluche que só ela (e nós) vê como humano (Tónan Quito já tinha vestido o pêlo deste urso desbocado e hilariante no teatro), embarcam numa odisseia pelas ruas de Lisboa que, a cada etapa, despedaça uma inocência de cada vez, patrocinada pelos sempre frustrados adultos.
O mundo deste filme não se sabe totalmente real ou ficcionado ou ambos, precisamente porque é feito através da lente que chama a criança dentro de nós aos nossos olhos, mas também à cabeça e ao coração. Vemos o mundo de Girafa ficar cada vez menos colorido, mais sério, adulto, e pensamos no nosso próprio crescimento. Tudo isto enquanto os nossos ouvidos são embalados pela música, também ela sabiamente inocente, de Foge Foge Bandido, um dos braços artísticos do monstro musical que é Manel Cruz. Agarrem-se às pipocas, pois este filme é daqueles que nos levam numa aventura (“uma aventura!”) sem sairmos do lugar.
Portrait of a lady on fire
Portrait of a lady on fire é a mais recente viagem da realizadora Céline Sciamma até ao século XVIII para explorar a manifestação da homossexualidade numa sociedade ainda longe de normalizar essa realidade.
É-nos contada a história de Marianne, uma jovem pintora que é contratada para, secretamente, fazer um retrato de Héloïse, que se recusa a pousar para uma tela, pois a entrega do quadro selará um casamento indesejado. Assim, a chave para o desenvolvimento de um futuro romance entre as duas é o olhar, o observar de cada ínfimo movimento, cada fio de cabelo que é pousado atrás da orelha, a maneira como as mãos pousam no colo, cada esboçar de um sorriso, cada curva do rosto. A sedução e o romance vão sendo desenvolvidos de uma forma muito fluída ao longo do filme, permitindo ao espetador ir conhecendo as personagens ao mesmo tempo que estas se conhecem a si mesmas.
A maneira sensual e delicada como a câmara capta o ato de observar e de ser observado surge-nos como o ponto alto da direção de Sciamma, que retrata a sexualidade feminina de uma maneira naturalista e íntima, como só a visão de uma mulher poderia retratar.
Portrait of a lady on fire atira-nos com a intensidade de uma cena final como já não víamos desde call me by your name, e ainda soma pontos por não fazer da descoberta da homossexualidade o seu único plano. Há espaço para falar-se dos abortos clandestinos da época, do corpo feminino e de arte.
The Farewell
The Farewell conta-nos a história da sua própria realizadora, Lulu Wang, que em 2013 recebia a notícia do diagnóstico da sua avó: uma doença já em fase terminal. A personagem principal, Billi, foi confiada – e bem – à atriz Awkwafina, com quem já tínhamos contactado em 2018 nos filmes Crazy Rich Asians e Ocean’s 8 e o papel da sua avó, Nai Nai, entregue a Shuzhen Zhao.
Billi é uma jovem chinesa escritora, mas criada em Nova Yorke desde muito nova. A certa altura, a jovem e os pais são informados sobre o estado de saúde da matriarca da família e voam até à china, ao fim de 25 anos, com a desculpa de um casamento (falso) de um primo organizado para que todos se possam reunir de novo e despedir de Nai Nai, mas sem nunca lhe revelar o verdadeiro porquê.
O drama familiar e o próprio conceito de família é explorado de uma forma cómica, mas sem nunca se esquecer de que são assuntos complexos: num momento estamos no auge do nosso riso e a cena logo a seguir é capaz de nos fazer parar para refletir. A racionalidade e a força para tomar decisões nos momentos mais difíceis ficaram ao encargue dos atores secundários e é a Billi que ficou entregue toda a carga emocional da história. É ela que representa a dor e a angústia de todos, não fosse a própria acusada pela família de não conseguir esconder os seus sentimentos para o bem da sua avó.
The Farewell faz-se de atuações excelentes, de frames de cortar a respiração e de uma banda sonora cativante. Ainda assim, a sua beleza assenta maioritariamente em todos os pormenores do seu guião, que se dispõe a comentar as diferenças entre os estilos de vida americano e chinês e a mostra-nos a realidade dura e crua de ter que lidar com a ideia de que um dia seremos menos à mesa.
Toy Story 4
A Pixar surpreendeu muita gente quando anunciou um quarto Toy Story, no final de 2014. Seguiram-se cinco anos de antecipação e receio para os fãs. Depois de uma trilogia quase perfeita e, aparentemente, terminada, havia mesmo necessidade de mais um filme? E será que ia ser tão bom como os restantes?
Não para a primeira questão, sim para a segunda. A verdade é que por mais desnecessário que Toy Story 4 seja, a sua narrativa não só reforça os valores que sempre foram os pilares da saga como lhes dá uma conclusão satisfatória.
Tom Hanks tem a sua melhor prestação como Woody, transmitindo as incertezas do protagonista sobre o seu propósito no mundo. Aceitar o fim da linha é uma mensagem forte que pode tocar mais os graúdos que os miúdos. Mesmo assim, qualquer criança vai ficar encantada com a magia típica da Pixar.
O impossível foi feito. Toy Story concluiu duas vezes a saga com sucesso. A Disney está de parabéns, mas esperemos que a empresa aprenda com o seu filme e saiba seguir em frente por um novo caminho.
The Irishman
Depois do sucesso de Roma, a Netflix voltou a apostar num grande realizador para obter sucesso. Martin Scorsese junta um trio inédito constituído por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci para produzir um dos seus filmes mais ambiciosos.
The Irishman é um épico da máfia e, simultaneamente, uma reflexão introspetiva e serena sobre a tragédia inevitável de uma vida de crime. Uma celebração do Cinema em que estes quatro vultos se tornaram estrelas e uma desconstrução do mesmo.
A saga de três horas e meia nunca perde o fôlego. Cada momento pode não ser absolutamente essencial, mas são peças importantes de um puzzle que nos confronta com a finalidade da vida. A fragilidade de De Niro e a grandeza quase sobrenatural de Joe Pesci são dois enormes destaques, mas é a altivez de Al Pacino que se sobrepõe a tudo o resto. Os três agarram o espetador em cada diálogo proferido.
No meio de remakes, sequelas e outros blockbusters de ação rápida, este ensaio paciente sobre camaradagem e mortalidade é um dos maiores destaques do ano.
Figuras do Ano
Realizador: Bong Joon-ho
2019 foi um ano onde várias lendas vivas do Cinema estiveram em destaque. Martin Scorsese, Quentin Tarantino, Pedro Almodóvar, entre outros, apresentaram marcos relevantes para as suas cinografias já extensas. No entanto, nenhum deles conseguiu conquistar o mundo, este ano, como Bong Joon-ho.
O realizador sul-coreano foi o primeiro do seu país a vencer a Palme d’Or, um feito alcançado por voto unânime do júri, algo que não acontecia desde 2013. Parasite quebrou barreias culturais e passou de uma obra tipicamente asiática a símbolo de problemas estruturantes do século XXI.
Para além do feito em Cannes, Parasite é o primeiro filme sul-coreano a ser nomeado para os Globos de Ouro e os Screen Actors Guild. É um dos filmes internacionais mais bem-sucedidos da história da bilheteira norte-americana e já quebrou vários recordes relacionados.
Todo este sucesso surgiu na mente de Bong Joon-ho. O realizador criou um dos melhores filmes não só do ano, como da década. Quebrou barreiras culturais e linguísticas e é já uma estrela global.
2019 foi um ano onde várias lendas vivas do Cinema estiveram em destaque, mas também foi o ano em que Bong Joon-ho se tornou numa lenda.
Ator: Joaquin Phoenix
O sucesso de Joker está intrinsecamente ligado à interpretação da sua estrela principal. Tudo começa e acaba em Joaquin Phoenix. O ator foi escolhido para o papel por ter já uma carreira aclamada. Mesmo assim, o currículo do ator norte-americano não será o mesmo depois de Joker.
As danças, os risos, a postura, aquele sorriso, enfim, tudo o que Joaquin Phoenix alcança na sua atuação ficará para a História do Cinema. É, sem dúvida, uma das melhores performances de sempre.
Do grande ecrã para as ruas, Joker é um sucesso viral, inspirando manifestantes em partes distintas do globo a vestir-se como a personagem, em protesto com as injustiças do sistema. De um homem doente e frágil surge a metamorfose que o torna o vilão mais infame da cultura pop e um símbolo do desafio às normas e opressões da nossa época. Phoenix encarna todos estes universos numa única interpretação
Num ano onde as categorias de melhor ator estarão recheadas de interpretações marcantes e auge de carreiras, Joaquin Phoenix supera-os a todos. Há quem possa não conhecer a carreira de Rick Dalton, ou o génio atormentado de Salvador Mallo, ou os crimes de Frank Sheeran, mas ninguém esquecerá o sorriso sangrento de Joker.