Cultura
LITTLE B: LITTLE BELEZA DA VIDA
Será que “há coisas que não se podem ficcionar”?
Muitos dos grandes nomes do teatro e do cinema dizem que “não há limites na performance”. E esta não é uma frase feita, dita com voz de coaching. Há quem acredite que o acting tudo pode representar e, acima de tudo, fazer parecer verdade.
De facto, esta é precisamente a particularidade que pode tornar o arte numa experiência tão intensa e perigosa. Quando demasiado envolvidos na ficção, mesmo enquanto espectadores, tendemos a querer experimentar. Exemplos cinematográficos disso são, por exemplo, a vontade avassaladora de gerar o caos que se apodera de nós depois de ver o Joker. Ou o insano desejo de cantar e dançar no trânsito depois de curtir o La La Land.
A veracidade convence-nos a querer sentir o semelhante.
Quando se trata de biografias é mais difícil. Mas Snowden faz-nos querer ser mais atentos e cuidadosos, 127 horas até nos acrescenta vontade de ser aventureiros e Hacksaw Ridge provoca uma crise existencial e põe em causa muitos dos nossos princípios.
Ver arte – seja ela qual for – e não sentir nada, não é bom sinal. Little B, com toda a sua confusão, faz-nos sentir qualquer coisa. Qualquer coisa estranha. Talvez seja vontade de não morrer.
Visões Úteis é um projecto artístico, de origem teatral, sediado no Porto. Imediatamente por isso, fez sentido o convite para assegurar parte da programação no 88º aniversário do Rivoli. Uma das imagens de marca da companhia é o trabalho de autor, assente numa direcção partilhada e metodologia colaborativa.
Tal liberdade permite ao grupo enveredar por onde quiser e Mário Moutinho, artista associado à companhia em 2018/2019, foi a matéria-prima eleita. Através de histórias e memórias, conselhos e sonhos por cumprir, agarraram na vida do artista para fazer nascer um espetáculo.
O ator e produtor é um homem, desde sempre, ligado à arte. Fez teatro, televisão e cinema, estudou no exterior para inspirar o interior e viveu as vidas diferentes que Portugal teve – nomeadamente antes e depois da revolução. E ainda tem muito para dar. Mas este não é um espetáculo documental.
Em palco, acompanhado por Ana Vitorino, Carlos Costa e Francisca Costa, o senhor de óculos e bigode conta não apenas aquilo que de se lembra mas aquilo que os outros lembram de si. Os restantes três intérpretes assumem orgulhosamente os seus óculos e bigode imaginários e dão vida à vida de Mário, com todas as viagens, mergulhos, sustos e perguntas difíceis que enfrentou. E lembram-no, eternamente. Até por aquilo que ele ainda não fez.
Não podes escolher aquilo de que te vais lembrar
É interessante concluir que uma pessoa pode ser uma peça. Por isso, obrigada Visões Úteis por darem interesse ao indivíduo e recusarem as histórias mirabolantes. Embora a vida do Mário seja mirabolante. Mas uma peça não precisa de ser uma pessoa como o Mário. Pode ser sobre uma pessoa normal, sem ter uma vida cheia de vida.
Daí que o cenário não era preciso, os figurinos não eram precisos, os jogos de luz e de som não eram precisos. Faltou o minimalismo real de uma vida real. Faltou ser verdade o suficiente e não parecer que estavam a atuar num palco de uma casa de renome.
Todo modo, ficcionaram o que não se pode ficcionar: o que ainda não foi feito. O Mário conduziu sem ter tirado a carta, tocou bateria sem ter chegado a pegar nas baquetas e deixou de ter medo de inícios e fins, ainda que continue aterrorizado. Trouxeram o homem para palco e abriram a vida mundana ao palco do teatro. Resta saber se o Porto estaria disposto a mostrar qualquer vida num palco seu…