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Cultura

J’ACCUSE: CINEMA MUDO A GRITAR SOBRE AS MAZELAS HUMANAS

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Com o filme mudo e banda sonora ao vivo, os espectadores puderam viver a experiência dos cinemas antigos na sala Suggia da Casa da Música. Ainda em preto e branco, “J’accuse” é do ano de 1919, do diretor Abel Gance e traz consigo toda a expressividade e nuances criativas do início da sétima arte.

O filme tem início nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, onde se vê o nome “J’ACCUSE” escrito com soldados em um campo de batalha. Durante as filmagens desta cena, o diretor disse estar “acusando a guerra, acusando os homens, acusando a estupidez universal”.

Numa sinestesia latente, ouvia-se a dor e tensão dos horrores da guerra. Ao vivo, pela primeira vez em Portugal, a Orquestra Sinfónica Porto Casa da Música, liderada por Christian Schumann, tocava a banda sonora original de Philippe Schoeller, desenvolvida em 2014 – logo após a recuperação do longa.

A obra cobre desde os dias felizes pré-guerra até os obscuros dias durante ela. Viaja de uma ciranda folclórica e festiva nas vilas provencianas até uma macabra ciranda de esqueletos estendidos e empilhados. “J’accuse” é um filme que acusa os nossos “pecados” e expõe as nossas entranhas em busca de poder. E não apenas mostra a guerra e aqueles que a viveram, como a atemporal natureza violenta do homem.

A narrativa expõe um triângulo amoroso entre François Laurin, um bruto bêbado, sua esposa Edith e o adultério com o poeta Jean Diaz – que depois vem a ser soldado e serve lado a lado com o violento marido.

Mesmo ciente do adultério, François – após ter a vida salva por Jean durante a guerra – compartilha com o amante a saudade e paixão por Edith Laurin e diz saber que ela ama verdadeiramente o artista. Nesta cena, em que ambos estão desesperados, é nítido e claro que em ambientes tão sórdidos como os campos de batalha florescem  emoções sinceras, com sentimentos puros e visíveis, e onde a empatia e união superam o ciúme e ódio.

Em determinado momento do filme, numa declaração de Edith Laurin sobre Jean Diaz, evidencia-se como o ser humano é capaz de se tornar vulnerável e ser completamente transformado pela paixão: “Como ele me ama! Ao considerar a minha tragédia mais importante que a dele própria!”.

Além disso, a longa retrata ainda as polémicas do machismo, através de um relacionamento abusivo, violência doméstica, estupro, cárcere privado e maus tratos. É de recordar que, estes comportamentos do homem para com a esposa eram tratados como “aceitáveis” dentro do matrimónio.

A cena do estupro de Edith Laurin por vários soldados inimigos é intensa. Abel Gance capturou o jogo de luzes com mestria, e a mulher parece ser praticamente “engolida” pelas sombras dos soldados. Posteriormente, este assunto levanta outras questões e temáticas relevantes e atuais, uma vez que Edith é descreditada e pedem-lhe para provar o seu próprio estupro – à semelhança do que acontece com várias mulheres, até nos dias de hoje.

Há momentos em que o cinema e a realidade não só se imitam mas são um só. “J’accuse” deixa transparecer os desesperos e consequências insanas dos que vivenciaram a guerra, a fadiga e as alucinações frequentes. As cartas de soldados aos familiares, o pânico dos soldados antes de voltarem à frente de batalha e o número reduzido dos que regressam depois. Tudo isso é real.

No fim do longa, a loucura de Jean Diaz, já pós-guerra, mostra a desesperança. O soldado dentro dele havia matado o poeta. Mortes em vão e sem propósito. Até o sol é acusado de ser uma testemunha muda de tamanho horror – papel que tantas vezes ocupamos ao nos posicionarmos sobre as misérias do mundo contemporâneo.

A luz vermelha surge sobre a orquestra, a simbolizar todo o sangue derramado em vão pelas guerras. Philippe Schoeller, emocionado, sobe ao palco e ao lado do maestro Schumann agradece ao público, a encerrar o cine-concerto.