Cultura

COVID-19: HÁ CULTURA ATÉ EM CLAUSURA

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Vejamos este cenário irreal: os leitores apaixonados têm todo o tempo do mundo para se afundar nas páginas, os realizadores obcecados têm planos de uma cidade deserta para admirar e há, finalmente, tempo para pintar, tocar guitarra, casar com a Netflix, ouvir o podcast que foi recomendado por dez amigos e escrever aquela ideia brilhante que andava a fazer comichão na nuca.

Bem-vindos à realidade 2020.

A utopia continua: as viagens estão mais baratas, os combustíveis estão mais acessíveis e há menos trânsito. As pessoas passam tempo em casa, conversam com a família, usam roupa confortável para estar no sofá. Têm tempo para fazer o que queriam fazer há anos. Algumas estão felizes por não terem de ir trabalhar. Outras descobriram que um email consegue ser tão eficaz como uma reunião de três horas do outro lado do país. Só é pena estarmos fechados em casa (tal como devemos) com medo de morrer ou matar alguém.

Mas terá de ser um vírus mortal a vir dar uma lição ao sistema que domina o mundo?

O mundo não vai ser igual quando a tempestade passar. E não é por termos trabalhos atrasados e alterações no calendário de exames. Morreram muitas pessoas. O dinheiro deixou de cair em várias carteiras. Viu-se a essência animalesca da humanidade a vir ao de cima, por causa de uma lata de atum.

Neste momento, enquanto os Super Profissionais de Saúde não dormem e outras tantas profissões não param, muitos podem dormir e parar, cuidar de si, cuidar dos outros e não morrer de aborrecimento.

As crianças olham pela janela e os idosos trancam portas, com medo que o bicho seja Covid-ado a entrar pela fechadura.

Mas a arte e os artistas arranjam sempre forma de entrar, porque a cultura é como a humidade – consegue chatear e deixar marcas eternas. Em plena quarentena e período apocalíptico, ser infetado com cultura é um bom antídoto – porque a cultura nos distrai e nos alerta, faz-nos bem e faz-nos viajar.

Os irmãos Sobral já agarraram no caos da realidade para fazer o que bem sabem fazer. Luísa apresentou-nos “O Bicho” e Salvador deu, este sábado, um concerto online, onde passeámos pela Quinta das Canções.

Pela primeira vez, em muito tempo, não vamos a lado nenhum. Temos de arranjar forma de sair, sem sair. Mas, felizardos do século XXI, temos ecrãs com filmes, séries e documentários à nossa disposição para um teletransporte imediato. E histórias sobre o mundo que gira (mesmo quando estamos fechados) não faltam – True Story (2015) e Richard Jewell (2019) são alguns exemplos. 

Quando os olhos se cansarem olhemos pela janela, sem pressa de desviar o olhar. Temos tempo. Também a arte demora tempo – Monet teve de deixar crescer os jardins antes de os pintar. E quiçá a quarentena não nos inspira a pegar num lápis ou num pincel.

Vários museus internacionais já dispõem de visitas virtuais e, em Portugal, o Museu Calouste Gulbenkian é um must, sem sequer tirar o pijama.

Conversar é uma arte e saber entreter é um dom. O Podcast é a nova companhia de eleição, até enquanto cozinhamos ou arrumamos tralha. Carolina Pinto e João André são um casal de atores que fecharam a porta de casa quando todos os seus espetáculos e compromissos artísticos foram cancelados ou adiados. À Porta Fechada nasceu este sábado, e promete animar diariamente a nossa quarentena – com histórias, ideias, piadas e frustrações de dois jovens artistas.

A arte salva vidas. E mesmo sem salvar, alivia-nos e “sempre é uma companhia” – já indica o título de um dos contos de Manuel da Fonseca.

É impossível impedir um artista de ser artista – prova disso são as salas de espetáculo e as ruas fechadas, e eles em casa a produzir para o mundo. E é impossível impedir uma sociedade de consumir cultura – prova disso são os 18 mil ouvintes no concerto em direto de Salvador Sobral ou a quantidade astronómica de Insta Stories a ler, a pintar, a fazer teatrices com os irmãos mais novos.

Enquanto a agenda cultural não regressa ao ativo, e não há concertos nem peças para aplaudir de pé, aplaudimos na janela os verdadeiros atores dos últimos dias. Aplaudimos com tal atitude, que é notícia de abertura de telejornal.

Somos mesmo uma Sociedade do Espetáculo.

Resta-nos aguardar, fazer o que nos compete e agradecer porque a arte, os artistas e a cultura existem. Uma chamada telefónica com a nossa avó dá um bom diálogo para cinema. E o melhor filme indie, gravado com o telemóvel da janela do nosso quarto, pode ser o próximo prémio a entregar nos grandes festivais de cinema.

Resta-nos esperar, porque o Covid-19 não mata de aborrecimento. Já diziam os Ornatos que a cidade está deserta e alguém escreveu incógnitas em toda a parte.

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