Cultura
Mais um dia do Teatro, entre todos os outros
A data é celebrada deste 1961. À semelhança de uma qualquer relação, no início é fácil dar prendas e programar uma festa diferente. Mas, este ano, tal qual mãe ou namorado desesperado, o país teve de ser mais criativo do que nunca. Decretado o estado de emergência e rasgadas as agendas culturais previstas há meses, restou apenas aquilo que verdadeiramente importa: o miolo do teatro.
E o miolo é a parte preferida de toda a gente. No pão e no teatro.
Neste caso, o miolo é o amor. E o amor é tanto e a quarentena é tão assustadora que, pelo amor ao teatro e pela vontade de celebrar, se atirou para o lado uma das suas características cicatrizadoras: a efemeridade.
O Teatro Nacional São João exibe “Castro“, às 22h, Depois da projeção, na Praça da Batalha, no dia do centenário, tudo indicava que a encenação de Nuno Cardoso abrisse portas hoje, no palco portuense. Mas a conjuntura alterou os planos. No entanto, não deixa de ser curioso como também esta tragédia se desenrola num palco que é uma casa, com uma narrativa claustrofóbica e com cada personagem cativa a si própria.
Podíamos ser nós ali. E somos. No teatro somos sempre nós.
Por seu turno, o Teatro Nacional D. Maria II dá-nos nova oportunidade de assistir a um dos melhores espetáculos de 2019: “Sopro” é exibido, às 21h, na Sala Online. Numa ode ao teatro e aos artistas, a encenação de Tiago Rodrigues sublinha a vida, as histórias, as memórias e as pessoas. No fundo, aclama o miolo.
Não, não é cinema. E não, não deixa de ser teatro. É apenas teatro reinventado, mais uma vez. Todos os dias o teatro se reinventa, e hoje é apenas mais um. Há projeções de espetáculos passados, porque recordar é viver. Há poemas e peças a serem ditos, sentidos e até representados, em direto – porque ser ator é ter urgência em partilhar. Há fotografias a rolar e textos a sair – de todo e qualquer um que sabe o que é o teatro.
Ser do teatro é ser amador. Porque se ama, muito.
O teatro não é a vida. E também não explica a vida. O teatro limita-se a brincar com a vida. Desmonta-a para a voltar a montar – tal como uma criança com um brinquedo novo. A grande diferença é que é uma grande brincadeira, com muitas crianças envolvidas.
Neste dia 27, (diferente e inesperado, assustador e meio-pós-apocalíptico) não são os bilhetes, as luzes e as brancas que importam. É a brincadeira.
Importa perceber que fazer teatro deveria ser como urinar: quando é preciso fazer, há uma vontade incontrolável – que não se pode (nem se deve) contrariar.
Por isso: faz-se em casa e até à distância. Faz-se sozinho, faz-se com os que vivem connosco, faz-se com os vivem do outro lado do telefone ou do ecrã do computador. “E-ensaia-se”. Faz-se com textos clássicos ou com improvisos no terraço. Faz-se. Faz-se por atores. Faz-se por não atores. Faz-se por amadores, principalmente. Por pessoas que amam muito, e não conseguem esperar que isto tudo acabe.
Pela primeira vez, o palco é o mesmo para todos: a casa. E é bom palco. É o palco que é preciso, para nos aliviar das vontades incontroláveis.
Quando o mundo permitir que nos possamos voltar a cuspir e a roçar em palco, voltaremos. Com força.
Vamos abraçar assistentes de sala e aplaudir de pé – com as mãos a tocar em tudo o que é lado – os intérpretes, os cenógrafos, os os figurinistas, os diretores de cena, os produtores, os técnicos de luz e de som, os encenadores e os dramaturgos. Todos. Dos que limpam aos que veem. Quem sabe este novo teatro não convença novos públicos a ir ao teatro, quando este mau tempo passar.
Até lá, o teatro continuará a resistir – sem máscara, nem luvas.
Não há bicho que pare o teatro, porque o teatro é ele mesmo um bicho – ou não se falaria em “bichinho do teatro”. E nem uma pandemia mortal é capaz de parar uma celebração que pode ser feita na casa de cada um, todos os dias. Basta ser amador, e ter a tal vontade incontrolável.