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Crítica

To Kill a Mockingbird: um mundo a negro e branco

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Das tantas obras que foram deixadas na nossa biblioteca planetária, das tantas que nos marcaram e continuam a marcar, a forma e o porquê de as categorizar em “clássicos” pode gerar perspetivas dúbias. No entanto, tal como muitas outras que já passaram além da Taprobana e ainda continuam a dar que falar, a obra “To Kill a Mockingbird” continua a ser reconhecida por exercer uma forte influência na evolução psicológica dos seus leitores, assim como por ser uma referência cultural utilizada em conversas intelectualóides.

Publicada em 1960 (e consagrada com o prémio Pulitzer em 1961), a obra de Harper Lee funde relevância histórica (por retratar os anos 30 e o auge do preconceito racial para com os negros) com qualidade literária e amadurecimento da psique típico de um bildungsroman.

Scout Finch, a sábia narradora autodiegética, relata-nos as suas andanças em Maycomb County, Alabama, onde viveu dos 6 aos 9 anos. Numa América onde negros e brancos são dois opostos e “quando é a palavra de um homem branco contra a de um homem negro, o homem branco ganha sempre. São feios, mas esses são os factos da vida.”

Enquanto Scout e o seu irmão mais velho, Jem, passam os tempos de escola a ansiar pelo verão e pelas suas traquinices com o compincha Dill, Atticus – o pai deles (que faz parte daqueles que “nasceram para fazer os nossos trabalhos desagradáveis por nós”), que é advogado de profissão, aceita um caso no qual tem de defender um negro acusado de violar uma rapariga branca, entrando numa luta pelos direitos de igualdade num mundo onde é em vão ter esperança.

O desenrolar deste caso (e da história) cativam, no entanto, a perspetiva infantil de Scout esfuma o traço político, suavizando a carga da História.

Audaz e maria-rapaz de natureza, a narradora roda entre um “eu” que, na verdade, se chama Jean Louise, e um outro “eu” de alcunha Scout. E enquanto o segundo está entranhado, o primeiro ela estranha. Jean Louise gosta demasiado de artimanhas e de rebolar no interior de pneus para se imaginar uma lady no futuro – embora, por outro lado, olhe com admiração para a força e desenvoltura das mulheres. Nas suas palavras: “ao observá-la, comecei a pensar que havia alguma habilidade envolvida em ser uma rapariga.”

Por seu turno, a sua figura masculina é Atticus, que é um pai ponderado, sábio, “cheio de peculiaridades” e que toma Jem e Scout por pessoas e não somente por crianças, o que significa que os dois crescem a identificar problemas criticamente e a pensar por si próprios. É por isso que a inocência expedita de Scout é tão crucial no encarar dos problemas, levando a que seja preciso “uma criança de oito anos de idade para os trazer à razão” e para os fazer pensar na possibilidade e necessidade de “uma força policial de crianças”.

A criança, com muitas crianças e adultos dentro de si, é a prova que, por vezes, escalar árvores compensa mais do que escalar o tom de voz.

A casa dos Finch ergue-se através da noção de que as pessoas não são iguais, mas que merecem igualdade. Por outras palavras: “há uma instituição humana que faz o pobre ser igual a um Rockefeller, o estúpido igual a um Einstein, e o ignorante igual a um qualquer presidente universitário. Essa instituição, cavalheiros, é um tribunal.” E mesmo que, ao longo de toda narrativa, seja possível pressentir o rumo do acusado Tom Robinson, o leitor fica na expectativa de uma rutura da mentalidade coletiva. (O leitor fica nessa expectativa, até 2020.) Porque um discurso assertivo, emotivo e calmo decerto que tem boas possibilidades de alcançar cliques em cérebros – inclusive, em 2020.

Mas se um clique não é fácil, é de ressalvar que todos os “baby steps” são cruciais para que um dia se consiga convergir o negro e o branco do mundo numa única tonalidade colorida.

Quando sair de casa se torna algo assustador porque não se quer ver o que está lá fora, é sempre bom ter uma mão para agarrar – ainda mais se esta pertence a uma criança inteligente e desapegada de mesquinhices adultas. Scout é esta criança; e a sua inocência – que, à semelhança de um mockingbird (cotovia), apenas canta para o nosso agrado – leva-a a concluir que a necessidade de superioridade humana é dispensável.

Diz um dos ensinamentos: “eu penso que só há um tipo de gente: gente.” Mas vivemos hoje cem anos depois do tempo narrado por Scout e parece haver ainda mais categorias que nos repartem. Esquecemo-nos que somos todos, hoje e desde sempre, apenas e somente, folks.

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