Connect with us

Cultura

Curtas de Vila do Conde: João Gonzalez navega no mar-alto da animação

Published

on

João Gonzalez é portuense e tem 24 anos. Toca piano desde os 4 anos, pensou seguir Engenharia Informático mas acabou licenciado em Multimédia pela Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD) , tendo-se especializado no campo da Animação. Atualmente, encontra-se no Mestrado em Animação no Royal College of Art, em Londres, onde fez nascer “NESTOR” – uma curta-metragem que realizou, ilustrou frame a frame, produziu e ainda musicou – sobre alguém que vive “escravo de uma obsessão: obedecer a um ritmo”.

“NESTOR” é um nome que advém da mitologia grega. Essa escolha foi propositada, ou um acaso?

Não há nenhuma grande explicação concetual por detrás de “NESTOR”. De facto, a curta chegou a ter outros nomes antes de ser este. Lembro-me de me ter lembrado de “Adamastor, o Gigante”, e depois lembrei-me do nome “NESTOR” – que, de certa forma, também me remetia para algo agigantado mas, ao mesmo tempo, era mais fofo, mais easy-going e se adaptava mais à personagem. Personagem essa que também tem proporções agigantadas mas, ao mesmo tempo, é uma personagem bastante indefesa.

Porquê a escolha desta temática? 

“NESTOR” é uma curta sobre um homem que sofre de comportamentos obsessivos-compulsivos e que, de certa forma, vive no seu maior pesadelo – porque parte do seu OCD é ter os objetos e a mobília num certo e determinando local mas, vivendo num barco que nunca para de oscilar, ele está constantemente em desconforto.

“A temática foi inspirada em vivências pessoais. E achei que era engraçado jogar com essa ideia de ter uma personagem a sobreviver no seu pior cenário possível.”

Antes do “NESTOR”, eu já tinha feito outro trabalho – o “THE VOYAGER” – que explorava a agorafobia, a fobia de sair de casa, e também era algo inspirado em vivências pessoas mais antigas. Mas o “NESTOR”, por se passar num cenário surreal, acaba por não ser tão diretamente autobiográfico.

 Qual o simbolismo da paleta de cores eleita, em tons de vermelho, preto, branco e azul? 

Acima de tudo, foi uma escolha estética. A parte cromática que faz diferença é o vermelho, porque representa as situações mais agitadas, no clímax – onde tudo passa para essa cor e, instintivamente, isso dá maior sensação de perigo. Mas, tirando isso, acho que fui apenas à procura de uma paleta cromática com poucas cores e que transmitisse o mood. 

De que forma é que a tua formação musical pesa no cinema de animação que crias? 

Desde criança que sempre tive muito mais ligações com artes e música, mas nunca tive muita proatividade em casa. Piano tive aulas, mas parei por volta dos 13 ou 14 anos, e nunca mais toquei até ir para a faculdade. Quando acabei a Licenciatura, e queria seguir para Mestrado, estava indeciso entre seguir Piano, ou seguir Animação. [Estando em Animação], essa formação ajuda-me não só na parte técnica – de ritmo e de desenhar os movimentos – mas, acima de tudo, até na parte narrativa.

“A música é uma linguagem universal e tem uma lógica que não se consegue explicar muito bem por palavras, é algo que se sente.”

Por exemplo, eu estou agora a fazer outra curta, que tem uma banda-sonora mais complexa do que esta, e estou a fazer o storyboard ao mesmo tempo que estou a compor a música – portanto, desde o princípio, que já estou a tentar sincronizar os compassos da música com o feeling de cada cena que estamos a ver visualmente. A música obriga-me a ver o todo da estrutura de uma forma mais direta.

O que é que te fascina mais na animação?

Em animação consegue-se, do nada, criar um mundo (desenhado), sem as pessoas estarem, constante e inconscientemente, a comparar isso ao mundo real. No entanto, essa comparação acontece muito em filmes de imagem real, porque basta haver maus efeitos especiais ou um argumento muito surreal e bizarro para as pessoas pensarem que é uma parvoíce. Em animação isso não é assim, e consegue-se, na mesma, criar metáforas fortes com o mundo real. 

“O que me fascina mais na animação é a liberdade que existe para se ser completamente surreal, absurdo e bizarro sem deixar de se ser levado a sério.” 

Acreditas que se vai desmistificar esta ideia da animação ser para crianças?

Acho que sim, para a nossa geração vai ser mais fácil. Aliás, já vês bastante isso, principalmente em canais como a “Adult Swim“, que tem uma aposta muito forte em animação. No entanto, na realidade, na área onde estou (que é de curta-metragens de autor) não existe muita projeção para fora do circuito. Há muita gente que não sabe sequer que se fazem curtas-metragens sobre temáticas sérias e experimentais. Mas na área de séries, como Rick e Morty, obviamente essa ideia já está a ser desmistificada.

Já tens temas que gostasses de abordar num próximo projeto?

As minhas duas primeiras curtas são, de certa forma, pessoais – porque abordam distúrbios psicológicos, em que, em parte, me revejo. Mas este próximo em que estou a trabalhar, embora seja também num cenário surreal, envolve mais personagens. É sobre uma família que vive num cenário muito estranho, numa casa colada a um precipício muito alto e eles saltam de paraquedas para ir à vila.

Fala mais sobre solidão, perda e relações familiares. Acho que é um filme que é mais poderoso, no qual estou a testar mais a minha capacidade de realizador de me por no lugar de uma pessoa que não viveu aquilo e de tentar emular essa sensação.

E que outros trabalhos paralelos se avizinham? 

Agora trabalho numa cooperativa, que é a COLA, que é sediada em Lisboa e está a crescer bastante rápido. Temos profissionais de topo mundialmente. Foi criado pelo Bruno Caetano, que é um realizador de stop-motion – e é o meu produtor neste momento, e espero que continue a ser. É um mestre de animação.

Lá existe um departamento de animação 2D em que, neste momento, trabalho eu e a Ala Leszyńska. Ela é polaca e é capaz de ser a minha animadora favorita no mundo. Para o meu projeto de final de ano estou a animar com ela e está a ser ótimo porque estou a aprender imenso – ela é surreal! E, neste momento, estamos a debruçados na produtora, na cooperativa, neste novo filme, a arranjar financiamento em Portugal e fora e, acima de tudo, vamos fazendo outros trabalhos mais comerciais.

“O meu maior foco neste momento é a curta. Quero que esteja acabada, no máximo, em maio ou junho do próximo ano. Assim, se calhar, passará no Curtas de Vila do Conde do próximo ano”

João Gonzalez está muito feliz por todas os prémios e nomeações que têm surgido, mas sabe que “é importante estarmos cientes e com os pés na terra de que a arte (e, principalmente, o cinema) são bastante subjetivos” e dependem sempre muito do júri – “talvez, se fosse outro diferente, não daria aquele prémio”.

Seja como for, “NESTOR” está, neste momento, a ser distribuído por vários países, de continentes diferentes e isso é, não apenas um incentivo, como uma validação da universalidade da linguagem do artista. No entanto, o mesmo garante que, mais do que qualquer estatueta, a sua “maior gratificação é mesmo acabar o filme e estar a fazê-lo”.

“Eu sou feliz enquanto estou a fazer o filme. Às vezes são 5h da manhã, eu estou a desenhar e considero que está a ficar fixe e penso que faço filmes para depois poder recomeçar o próximo. Esse é o meu objetivo”

Em relação à presença no Festival Curtas Vila do Conde, João Gonzalez garante que está “muito feliz”, porque “há uma grande diferença  entre vê-lo no cinema e no computador” e, portanto, uma boa sala de cinema, como o Festival tem para oferecer, fará toda a diferença para dar “a sensação de estarmos mesmo no barco”.