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Cultura

Comédia de Bastidores: rir ou ter pena, eis a questão

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Em 1997, João Cardoso pegou neste mesmo texto, num trabalho para o Teatro Experimental do Porto. Mais de duas décadas mais tarde, lado a lado com Nuno Carinhas, Comédia de Bastidores volta a ganhar vida – desta vez numa encenação não tão debruçada sobre a “máquina teatral da comédia” mas, em grande parte também, sobre “o lado mais negro” desta história.

Absurd Person Singular – assim era o título original da peça de Alan Ayckbourn. E, de facto, independentemente das mudanças de nome, e independentemente da forma como se aborde as personagens, o texto por si só evidencia a estranheza, humanidade e singularidade de cada uma.

Em cena, a sair e a entrar, conhecemos três casais: os jovens empresários, o arquiteto e a deprimida, o banqueiro e a diva. São três casais amigos – embora tal não se dissesse, ouvidos os comentários privados entre o par. Seja como for: são três casais que celebram, juntos, três Natais consecutivos, um em casa de cada um. E nós, que assistimos ao Natal em outubro, contemplamos o desgaste ou o adensar da cumplicidade entre os dois e entre todos.

Depois de meio ano fechados em casa com a nossa família e com os seus problemas é, no mínimo, “atrevido” trazer esse caos para palco – principalmente, com o objetivo de gerar o riso. 

Mas o atrevimento faz bem e o caos organiza a cena e, como tal, Comédia de Bastidores resulta numa peça inteligentíssima, em cada decisão. O cenário vai sendo o reflexo do sanidade mental dos anfitriões passando por: falsamente limpo, absolutamente caótico, quase sinistro, e tão fora de controlo que mais vale gargalhar. E cada transição de casa é uma autêntica valsa entre atores, luz e som, o que eleva o espetáculo ao meticulosamente bem sucedido.

A grande particularidade desta história é o espaço da ação. Alan Ayckbourn, em 1991, ao escrever esta sua criação deparou-se com a magia de ter “a ação fora de cena”, ou seja, a impressão de ter colocado a narrativa a acontecer no “lugar errado”. E, teatro que é teatro, adora brincar com o que não está certo. As ceias de Natal acontecerem, evidentemente, na mesa grande da sala de jantar, mas Comédia de Bastidores vive-se na cozinha – sim, na cozinha! Esse espaço interessantíssimo onde se confeciona o alimento da vida humana: os mexericos.

Durante 2h30 vemos formigas tão trabalhadoras quanto desnorteadas, tão irrequietas quanto contidas. Vemos seis atores – dos melhores que os nossos palcos têm.

Nuno Carinhas e João Cardoso sublinharam a crueldade destas seis vidas (tão comuns e tristemente identificáveis), sem nunca descurarem o riso. Abordaram os conflitos sociais, a traição, o desespero, a fraqueza individual e o cansaço coletivo sem nenhum receio do texto, nem de o demonstrar fisicamente. E, como gente grande que são, tornaram três assuntos potencialmente perigosos – a obsessão, o suicídio e o álcool – numa comédia de três atos absurdamente real, principalmente porque as personagens não tinham noção do quão cómicas eram.

“Se escolheu viver comigo, foi porque já sabias as minhas regras”, afirma-se, a certa altura, numa conversa só de homens. “Não tornes tudo ainda mais embaraçoso”, sussurra-se, num outro momento, numa repreensão de casal. “É em alturas como esta que ficamos felizes por termos amigos”, é dito ainda, sem desenvergonha nenhuma da falta de sinceridade num brinde com todos. Comédia de Bastidores é uma risada gozona para com o tempo, que nos torna adultos sovinas, mentirosos, desesperados e isolados mas (pelo menos!) com uma vida muito mais divertida para ser contada em palco.

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