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Cultura

Quino (1932-2020): “Penso, logo incomodo…”

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Quino foi um artista reflexivo e disruptivo, que perante um mundo complicado e socialmente injusto conduzia as suas angústias e inquietações para as personagens que criava. Inspirado pelas suas vivências do mundo, pelos episódios dramáticos no contexto da Guerra Civil Espanhola e da II Guerra Mundial, e tendo crescido no seio de uma família politizada, Quino alimentou desde criança o seu interesse por política, democracia e liberdade. Nascido em 1932 numa família modesta de origem espanhola, que em tempos de crise emigrou para a Argentina, Quino dedicou a sua infância a desenhar os seus sonhos e tudo o que imaginava para um mundo melhor. Após ter estudado na Faculdade de Belas Artes e de vender desenhos humorísticos para jornais argentinos, foi no ano de 1963 que viu publicado o seu primeiro livro intitulado “Mundo Quino”. Foi, no entanto, só em 1964 que nasceu a sua personagem mais famosa, a Mafalda.

A Mafalda personifica uma infância habitada pela imaginação e pelo sonho de um mundo melhor, mais justo e solidário, onde a paz seja uma realidade. A personagem representa os desassossegos e as desilusões face a uma sociedade que valoriza os interesses financeiros em detrimento dos direitos humanos, mas também revela o que o seu próprio criador desejava para o mundo. Inconformada e pertinente, a Mafalda carrega consigo um caráter político sério, embebido num humor particular. Sempre em tom crítico e reivindicativo, ela dialoga constantemente com o mundo adulto, ao qual ela atribui a responsabilidade pela adulteração do mundo.

E o que importa a idade quando se é imortal? A pequena Mafalda reclamava por um desejo valioso que tem atravessado gerações: curar o mundo.

Alguns movimentos sociais, nomeadamente feministas, identificaram-se com as posições da Mafalda e, com o consentimento de Quino, apropriaram-se das tiras da banda desenhada para as usarem em campanhas de conscientização para os direitos das mulheres. O espírito ativista da obra de Quino espelha a sua própria vontade em quebrar o silêncio e amplificar a voz das pessoas mais desprotegidas e socialmente vulneráveis da sociedade. E se esse ativismo era tão necessário nas décadas de 60 e 70 do século XX, hoje continua a fazer sentido, considerando que muitos dos problemas da época, como a pobreza, as injustiças e desigualdades sociais, prevalecem.

Quino viveu uma época de severa turbulência política, económica e social na Argentina, onde as suas criações passaram a ser uma ameaça ao regime ditatorial em ascensão, no início da década de 70. Nessa altura, artistas e intelectuais argentinos que se opunham ao sistema eram perseguidos sob a ameaça de serem assassinados. Foi neste contexto que Quino viajou para a Europa, exilou-se em Itália e cessou as histórias da Mafalda. Contudo, o autor continuou a desenhar e a dedicar-se a outros trabalhos de cariz interventivo, nomeadamente em campanhas da UNICEF e da Cruz Vermelha. Embora Quino tenha deixado de produzir as histórias da Mafalda, ela já era amada e já tinha sido adotada pelo mundo, tornando-se imortal. E o que importa a idade quando se é imortal? A pequena Mafalda reclamava por um desejo valioso que tem atravessado gerações: curar o mundo. E esse processo implicava não deixar de ser criança para assim continuar a ter a simplicidade, a audácia e o discernimento para poder vislumbrar um mundo diferente.

Através da sua “literatura desenhada”, como referiu o filósofo José Pablo Feinmann, Quino deu-nos a oportunidade de pensar sobre liberdade, despertando e resistindo, desobedecendo e sorrindo.

A leitura da Mafalda resgata um tempo que se poderá confundir, em alguns aspetos, com o de hoje. Das crises existenciais e reflexões filosóficas às contestações políticas, a Mafalda retrata uma infância eterna inquietada por uma orfandade, causada por um mundo desengonçado. A complexidade dos seus pensamentos, nutridos por uma dose corrosiva de comicidade, combinava uma díade paradoxal, entre o pessimismo e a esperança. E onde reside o melhor da esperança se não no tempo da infância, onde todos os sonhos poderão ser possíveis? Com a Mafalda, ao longo das últimas décadas, ventos de mudança têm sido reclamados assim como olhares e pensamentos críticos e criativos, daqueles que agitam e incomodam.

A Mafalda é uma espécie de cápsula do tempo onde tempos, valores, consciências e inquietações se confrontam. O mundo está sempre em transformação entre os encantamentos e desencantamentos de uma globalização desenfreada. Há valores e direitos humanos fundamentais que pensávamos ter como garantidos, mas que precisam de ser exigidos e (re)conquistados, estejamos vigilantes e desconfiados(as).

Através da sua “literatura desenhada”, como referiu o filósofo José Pablo Feinmann, Quino deu-nos a oportunidade de pensar sobre liberdade, despertando e resistindo, desobedecendo e sorrindo. Num tempo de permanentes desafios e emergências, quando “o urgente não deixa tempo para o importante”, é altura de incomodar, quebrar muros e praticar utopias.

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