Cultura
21ª Festa de Cinema Francês – Felicità: seria cómico se não fosse trágico
Na categoria de Primeira Chance, “Felicità” é um dos três filmes inéditos, em busca de distribuidores, que receberam a sua primeira oportunidade de exibição em Portugal. A comédia lançada em julho deste ano, tem 81 minutos e vem munida de todas as peculiaridades da sétima arte francesa, porém sem clichês e estereótipos.
Acompanhamos intimamente a corrida contra o tempo de uma família nómada, na estrada, durante o último dia de férias da filha. O ditado popular “seria cómico se não fosse trágico”, traduz o enredo do filme que mistura temas como relações familiares, padrões sociais e a definição de felicidade – sempre questionando a normalidade, as tradições e a forma séria de se ver o mundo; e permeando a forma poética entre a comédia e o drama.
Chloé e Tim, interpretados por Camille Rutherford e Pio Marmaï, são pais extravagantes e não convencionais que desenvolvem imprevisíveis situações em que sua filha, Tommy, de 11 anos, já está acostumada a viver. Desde brincadeiras com histórias sérias, que fingem serem verdade, até comportamentos excêntricos, como passar o verão numa casa invadida de desconhecidos que saíram de férias.
A inocência e moralidade de Tommy é distorcida – praticamente roubada.
Eles brincam ao faz de conta e fingem ser normais, enquanto questionam se a felicidade é ter uma vida com uma casa própria, um cachorro e um trabalho fixo ou se é viver em liberdade, no aqui e agora. Há, porém, um desejo intrínseco e talvez inconsciente de normalidade, apesar de viverem à margem disso, em busca da felicidade – seguindo o ditado de Lou Andreas-Salomé que aparece nos créditos: “Se você quer ter uma vida, roube-a”.
A trama gira em torno destes pais, instantâneos e desapegados, e da pequena Tommy que, nas entrelinhas, vai levantando questões como o bullying que sofre na escola e como o ambiente não-convencional em que vive tem impacto na sua vida. O suspense mistura-se com cenas fantasiosas e absurdos reais, e torna-se difícil distinguir o que é a realidade e o que é a imaginação de Tommy.
A coisa mais importante para Tommy era não perder o primeiro dia de aula da escola. Ela passou o verão a contar e recontar os materiais escolares que tinha dentro da mochila para nada correr mal no grande dia – que corresponde a uma espécie de retorno à normalidade. Porém, no último dia de férias, o pai impulsivo – que fugiu da prisão 6 meses antes de acabar a sentença – acaba a roubar um carro desportivo quando vai à procura da mãe, que desapareceu após um dia de trabalho.
Entre situações trágicas e cómicas, o amigo imaginário de Tommy, um astronauta interpretado pelo rapper francês Orelsan, fornece conselhos para ela lidar com as situações que seus pais a colocam. E, apesar do peso dos temas, os atores são excelentes e a ligação pai-filha é explorada de forma delicada e sentimental através dos diálogos, e é explícito o amor presente na relação, por mais conturbada que seja.
A família é complexa e bagunçada mas o amor não falta.
Numa das cenas mais emblemáticas do filme, Tim pede à filha para ter “cuidado com a normalidade. Pessoas normais escondem algo. A única maneira de lhes resistir… é eliminá-los! Entenderás isso rapidamente à medida que cresces”, ideia à qual Tommy responde com um simples “Eu já cresci”, evidenciando a maturidade precoce que a menina adquiriu.
A música italiana “Felicità”, de Al Bano e Romina Power, popular na década de 80, não só deu o nome mas também um ritmo solar ao filme que tem uma relação forte com a sonoplastia. Tanto que existem cenas em que “escolher a música perfeita” é o lema dos personagens, de modo a manter sempre fixos na memória os momentos especiais em família. No entanto, é de sublinhar que também os momentos de silêncio, em que Tommy coloca seus fones anti-ruídos e se isola dos pais, contribuem para esse ritmo que equilibra momentos pesados e suaves.
O filme é equilibrado com cenas leves e engraçadas, mas a ideia passa por não explicar todos os contextos presentes e deixar que o espectador preencha os buracos. Bruno Merle, roteirista e realizador do longa, declara que o filme é “uma caça ao tesouro e fiz de tudo para incluir o espectador. Mas cabe-lhe encontrar o caminho certo, a resposta certa. A maioria das respostas é dada, mas é verdade que existem certas áreas de imprecisão que podemos imaginar ou adivinhar.”
https://www.youtube.com/watch?v=_lJe5bV4Bss
A ligação familiar não fica só dentro da tela – de facto, a atriz Rita Merle, que interpreta Tommy, é, na realidade, filha de Bruno Merle. E quem também faz uma rápida aparição no filme é a a sua companheira, a cantora Emmanuelle Demestrau.
“Felicità” fica em cartaz no Cinema Trindade até ao dia 1 de novembro e a 21ª edição da Festa do Cinema Francês segue no Porto até ao dia 4 do mesmo mês.