Cultura
21ª Festa do Cinema Francês – Docteur?: num só eu cabem dois
Ziguezagueadas que nem num tabuleiro de damas, lá conseguiram ser arrumadas na sala todas as peças humanas que se atreveram a sair de casa e a pisar território menos seguro. Duas vozes descontentes com os seus lugares ainda rogaram ao “chefe de sala” com um amistoso “não se esqueça de nós”, para que este encontrasse uma posição alternativa onde as encaixar. Puzzle concretizado, as luzes apagaram-se.
Docteur? é uma comédia de Tristan Séguela, cuja hora e meia relata uma só noite da vida de Serge. Se por um lado é uma noite de trabalho como muitas outras, por outro não é uma noite do ano qualquer: é véspera de Natal e Serge é o único médico de serviço que circula nas ruas parisienses.
A primeira imagem que desenhamos de Serge é a de um médico pançudo, beberrão, fumador e que pouco quer saber do seu trabalho. Na verdade, assemelha-se àqueles bad boys fora da linha que se conhecem de outros filmes – ainda por mais quando a canção de fundo é o “Santa Baby”, de Eartha Kitt. No entanto, com o aparecimento de Malek, um motorista (melhor, “biciclista”) da Uber Eats gentil e desenrascado, rapidamente se eliminam os preconceitos levantados pelas primeiras aparências do filme. Não só é único no Instagram (uma vez que aqui se designa por “kiwi no bairro”), como também tem um caráter castiço que o torna especial na vida não virtual.
Por obra do destino, ou do realizador, os caminhos de Serge e de Malek cruzam-se numa noitada que se revelará uma verdadeira encruzilhada. Incapacitado com dores nas costas e pernas adormecidas à custa de uma injeção mal dada, Serge transfere as rédeas do seu posto para Malek, passando a ser este quem faz as visitas aos doentes na noite de consoada, onde geralmente “há muitas intoxicações de estômago”.
Não é só com problemas estomacais natalícios que se depara, e é alternando as encomendas de restaurantes Bun Bo com as auscultações a doentes que Malek recebe luzinhas de medicina e que vai interiorizando mais a sua nova identidade.
Docteur? encarna uma promessa de gargalhadas, e tão altas que originam um coro de vozes que quase parece normal e desobstruído de máscaras faciais
Como Serge carrega um peso atado ao passado que lhe retira a importância ao Natal e Malek precisa de ganhar dinheiro, os dois seguem doente atrás de doente numa longa noite de serviço, onde relações se estreitam e casmurrices dão lugar a sorrisos.
Docteur? surpreende com boas imagens, personagens curiosas e falas que são empregues com perícia, desmanchando uma plateia em risos. Incontáveis vezes. Até mesmo para aqueles que geralmente descartam comédias das suas escolhas cinematográficas, Docteur? encarna uma promessa de gargalhadas, e tão altas que originam um coro de vozes que quase parece normal e desobstruído de máscaras faciais.
Se Serge “há muito tempo que já não era tão bom médico”, como nesta noite onde foi substituído por um leigo na área, este foi também acordado da sua inércia emocional através da espontaneidade e leveza de estar de Malek. “As pessoas precisam de si”: e poderá haver na vida sentido mais claro e satisfatório que este para se desejar?
A Festa do Cinema Francês prolonga-se até ao próximo dia 4 de novembro. E já como o ilustre “chefe de sala” no Cinema Trindade dizia: “não deixem o nariz de fora que é feio”.