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As Três Irmãs: o som desembaça a palavra

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Era uma vez três irmãs. Era uma vez a Rússia. Era uma vez um nó de suspiros emanados de uma só vez, numa só casa. Foi assim que, há 102 anos, Anton Tchekhov escreveu uma peça para o Teatro de Arte de Moscovo, que estreou a 31 de janeiro de 1901.  Há mais de um século de asfalto entre a criação e a recriação e, no entanto, ela move-se. Ela quem? A alma, a obstinação, a inquietação e a dúvida.

É interessante sublinhar que a primeira leitura do guião, no Teatro de Arte de Moscovo, deixou Tchéckhov com as mãos em posição de espanto uma vez que os atores encararam a peça como um drama quando (imagine-se só!) este era devoto da ideia de ter redigido uma verdadeira comédia.

Em pleno início do século XX, a Rússia anunciava o fim da servidão, o declínio da aristocracia, o surgimento da burguesia, o aparecimento de uma densa classe operária que procurava responder à necessidade da industrialização. Trabalhar era cumprir o dever e visto como o nobre serviço. A mudança seria o pano de fundo da motivação que se concretizou com a Revolução de Outubro, 16 anos após a estreia da peça.

Hoje, Carlos Pimenta propõe mais do que uma adaptação ou reconstrução artesanal à luz do seu toque.

Quis-se inovar a forma de contar vidas em palco, e o encenador procurou que o núcleo fosse o da performatividade do som e da palavra. Noutros termos, “As Três Irmãs” não se apresenta como uma peça convencional. O desafio foi o de desconstruir a expectativa do público perante um constante estímulo visual que monitoriza e expressa a narrativa. Aqui, a encenação desafia-nos a ativar a sensibilidade auditiva e a sentir que desconstruímos a apreensão do real.

Os pequenos vislumbres que acompanham a trama só existem quando falados. Não havendo nada para dizer, as personagens retomam a sua condição de atores e sentam-se, reforçando – em permanente dinâmica – a ideia de que a voz é o único sinal que indica vida em palco.

O espaço cenográfico é o mesmo do estúdio de gravação, invocando-nos para uma esfera onde a ação não é o gesto mas o soluço, onde reaprendemos a absorver e a interpretar através do desenho do som.

Recorrendo à organização do espaço sonoro-cénico, os cânones do teatro reconfiguram-se e o texto, que é o mesma há um século, conta-se num outro tom.

Quanto à própria da vida (que, diante nós, no meio de nós ou entre nós adquire densidade) vemo-la ser capturada para fora da carapaça que nos mascara e deixamos que seja dissolvida na dor do realismo e na inquietação da existência.

Em palco estão as personagens, em agonia pelo presente e em suspiro pelo futuro próspero. Na plateia estamos nós, que saudamos o passado em detrimento deste presente tão amargo. Se as nossas vozes se unissem, cantariam a mesma canção, embora o pedido no refrão fosse diferente. O contraste entre as duas realidades não é mais forte do que o que nos aproxima: a felicidade, o propósito da vida e as conceções do amanhã.

Tchekhov profeciou o que se verifica : quem nunca parte, nunca chega.

As três irmãs sonham de forma entusiasta, definem objetivos bem contornados, e acreditam que, chegando a eles, seriam felizes. Mas as esperanças acabam frustradas pela estagnação da sua conduta, pela inatividade, pelas palavras aéreas sem concretização no real.

Irina diz: “nós somos três irmãs. A nossa vida ainda não foi bela… abafou-nos como uma erva daninha”. A esta premissa esperançosa de que o melhor ainda está para vir, junta-se Olga e Macha. Juntas planam no discurso fantasioso o que nunca acontecerá pelas suas mãos, sem noção de que estão enredadas no trivial fluir do quotidiano numa cidade da província. A história avança, e vem à tona a impreparação para a agrura da vida, o conflito interno que a paixão provoca, a catástrofe inesperada que faz rever moralidades, e mortalidades.

Por fim, o autor deixa-nos com a grande questão ecoante: “afinal, o que importa tudo isto?”. Se a tivermos como mantra, o punho cerrado abrirá em flor.

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