Cultura

Listen: o grito ensurdecedor de Ana Rocha de Sousa

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Recorrer ao próprio trabalho para comentar tensões sociais e usar a própria voz em prol daqueles que mais precisam é já prática recorrente dos guionistas que fazem diariamente chegar até às salas de cinema novas histórias. Mas nem por isso deixa de ser um desafio de responsabilidade acrescida.

Ana Rocha de Sousa mostrou estar à medida do compromisso que fez na sua primeira-grande metragem, quando se aventurou a tecer uma assertiva crítica ao sistema de adoções forçadas do Reino Unido, que todos os anos é responsável pela separação de milhares de famílias sem aviso prévio, numa ação que se baseia em preconceitos e carece de uma investigação profunda.

O filme conta-nos a história de Bela (Lúcia Moniz) e Jota (Ruben Garcia), um casal português emigrado em Londres com os seus três filhos, que passa por dificuldades monetárias resultantes da precariedade dos seus empregos. Um dia, a segurança social invade-lhes a casa para lhes retirar as crianças depois de Lu (Maisie Sly), a filha surda do casal, aparecer na escola com umas manchas roxas nas costas e sem o seu aparelho auditivo – a sua única forma de comunicar. Mas aquilo que tudo tem para ser tomado como um caso de violência doméstica, não passa apenas de uma sequência de infelizes coincidências: Lu desenvolveu recentemente uma doença que origina o aparecimento dessas manchas e o seu aparelho quebrou-se numa queda.

Tudo o que se segue a partir daqui é a luta desesperada de dois pais contra um sistema que teima em reduzir pessoas a um processo de arquivo irreversível e a fazer da vida de milhares de crianças um negócio.

A narrativa assinada por Paula Alvarez Vaccaro, Aaron Brookner e pela própria realizadora é um sério grito de revolta, que pouco fogo de artifício tem para nos oferecer – como o tema assim o exige. Listen são 73 crus, desconfortáveis e devastadores minutos que nos conduzem por uma luta moral interior em que acabamos sempre do lado dos pais, por muito que as suas ações sejam reprováveis. Não importa o que Bela faça, não há uma única vez em que não consigamos percebê-la, porque assim é um coração de uma mãe – capaz de nos guiar até ao lado certo, ainda que pelos caminhos errados. Seja a roubar ou a ponderar fugas ilegais, há uma coisa que o filme deixa evidente: não há furacão capaz de deixar maior rasto de destruição, do que aquele que uma mulher é capaz quando o assunto em cima da mesa é o bem-estar dos seus filhos.

Muitos reconhecem em Listen influências do mesmo realismo social que caracteriza o trabalho do britânico Ken Loach, responsável por obras como “I, Daniel Blak”, “Sorry We Missed You” e “Kes”. Outros vão até ao lado asiático do globo para fazer comparações com o japonês Hirokazu Koreeda, o mesmo que escreveu e realizou “Shoplifters” e “Nobody Knows”.

Por muitos nomes que possam ser evocados, o estilo de Ana Rocha de Sousa vale por si só. É só seu e não está para comparações.

Ainda muito naive, o filme apresenta algumas falhas – não fosse esta a sua primeira aventura pelas grandes-metragens. Cenas como a do tribunal, parecem-nos completamente irrealistas, mas a verdade é que serve bem o seu propósito de expor o desespero de dois pais perante a falta de compaixão do sistema.

Imagem: “Listen”

A dor e angústia não só de Bela, mas de todas as mães que se veem nestas situações, ficaram (bem) entregues a Lúcia Moniz, que nos oferece uma das mais arrebatadoras atuações do ano. Dona de um talento sem igual, usa um só corpo para carregar, durante todo o filme, a agonia de uma família inteira. Quando grita, gritamos com ela. Quando chora, choramos com ela também – e aquela sala com a lotação a metade do Cinema Trindade é prova disso mesmo. Mas a atuação de Lúcia Moniz vai além da típica prestação dramática que dela seria esperado. Quando fica em silêncio, é impossível se estar. É brutalmente ensurdecedor. E é aqui que se traça uma linha entre bons e maus atores: a capacidade de contar histórias, ainda que sem palavras.

Não é difícil entender que Listen tenha conquistado o coração do Festival de Veneza e tenha sido um sucesso de bilheteira na sua semana de estreia. É um grito ensurdecedor de Ana Rocha de Sousa que teima em não sair-nos da cabeça, nem do coração. Desengane-se quem ache que uma visão masculina pudesse fazer o mesmo feito. Só mesmo uma mulher (e mãe) é capaz de dar o tratamento certo a histórias como estas, que requerem uma sensibilidade que só atinge a sua plenitude quando contadas no feminino. A aparição de Ana Rocha de Sousa nos grandes ecrãs é marcada por uma viagem íntima e angustiante por esta realidade que pouco diz à maioria dos portugueses, para nos lembrar do quão privilegiados somos.

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