Crítica
Pieces of a Woman: peças soltas que só Vanessa Kirby conseguiu juntar
Com a produção executiva de Martin Scorsese, o desempenho no papel principal de Vanessa Kirby (a eterna Princess Margaret de The Crown), assim como com as emocionantes performances de Ellen Burstyn e Shia LaBeouf, este filme tem tudo para dar certo. Conta também com Ben Safdie, metade dos Safdie brothers – os mesmos que anteriormente realizaram Good Time e Uncut Gems, filme que deu que falar no ano passado. Cada vez mais há uma grande dificuldade em separar a arte do artista e tendo em conta as recentes acusações de violência doméstica por parte de FKA Twings, apesar da sofrida performance de Shia LaBeouf, é bastante improvável vermos o seu nome na lista de nomeados para os Prémios da Academia (e ainda bem).
A realização é do húngaro Kornél Mundruczó, sendo esta a sua primeira obra em língua inglesa, e o argumento da sua mulher Kata Wéber. O filme trata de algo pelo qual também eles passaram: a dolorosa perda de um bebé. Segundo Kata, Pieces of a Woman tornou-se numa forma de se expressar, até mesmo uma forma de terapia, depois de uma dor tão profunda.
A primeira meia hora de filme é de cortar a respiração. São vários minutos angustiantes que parecem passar num instante. Filmada durante dois dias, num total de seis vezes, foi minuciosamente preparada e coreografada, para representar ao detalhe o sofrimento por que Martha (interpretada por Kirby) passa durante o parto natural em casa, bem como o nervosismo de Sean, seu marido. Esta introdução, sem um único corte, assombra todo o filme e torna-se numa das cenas mais violentas dos últimos anos. Brutalmente real, tem momentos impressionantes de pura aflição e sofrimento sem filtros que culminam na morte do bebé.
Ficamos desde o início do filme emocionalmente abalados e torna-se difícil recuperar depois de um começo tão impactante.
É este um dos poucos problemas de Pieces of a Woman: como manter o ritmo depois de um início tão intenso? Depois de vermos, por fim, o título do filme a aparecer no ecrã, após precisamente 30 minutos e 28 segundos, tudo desacelera e passamos a assistir a fragmentos da emoção vivida até então. Mas a atuação do elenco salva o que poderia ser uma queda abrupta.
Há vários momentos que nos captam em especial a atenção, como o notável monólogo de Elizabeth, mãe de Martha, interpretada pela veterana Ellen Burstyn. A atriz de 88 anos pode, este ano, quebrar recordes ao tornar-se a atriz mais velha de sempre a receber uma nomeação para os Óscares e, quem sabe, ganhar a estatueta de melhor atriz secundária. Tornar-se-ia também a única pessoa a ser nomeada após um intervalo de 20 anos sem nomeações, depois de ser indicada ao prémio 5 vezes apenas entre 1972 e 1981. Passados 46 anos desde que arrecadou o seu único Óscar até à data, de melhor atriz, este pode ser um ano histórico para Ellen Burstyn.
De volta ao filme, não se pode deixar de referir as semelhanças com Manchester By The Sea: a neve, a morte, a dor e, particularmente, a maneira como cada personagem lida com a mágoa e o desgosto. Entre Martha e o seu marido Sean os contrastes são evidentes, desde logo no que toca ao estatuto social e à profissão (ela trabalha num escritório moderno e ele num estaleiro de construção de uma futura ponte). Estas disparidades acentuam-se à medida que o filme se desenlaça, terminando com ele alcoólico, agressivo, sem saber lidar com a dor, em oposição ao estado de aparente apatia dela.
Também em relação à sua família, Martha tem algumas discordâncias: a sua mãe quer que o bebé seja enterrado enquanto que ela quer doar os órgãos à ciência; a mãe e Sean culpam a parteira imprevista pela morte do bebé, Martha não. Ao longo do filme as diferenças e conflitos agigantam-se gradualmente e isso reflete-se no estado psicológico das personagens, bem como no espaço exterior – a casa transforma-se num local cinzento, sem vida e frio.
Antagonicamente, à medida que a ponte em que Sean trabalha, e que aparece ao longo do filme como referência cronológica, vai sendo construída, o casamento entre Martha e Sean desmorona-se.
Pieces of a Woman cumpre o seu objetivo de mostrar a realidade crua e dura que é passar por uma situação traumática como a perda de uma criança e, se conseguimos chegar ao fim de um filme tão devastador como este, é Vanessa Kirby quem merece todos os louvores.
Torna-se injusto reduzir a excelência do filme à primeira parte, mas é inevitável. Todavia, Kirby brilha, indubitavelmente, durante as suas inquietantes duas horas.
Este filme não romantiza o sofrimento e prova que não há um manual de instruções que tenhamos de seguir para ultrapassar a perda de uma vida. É no final que compreendemos todo o simbolismo das sementes de maçã que Martha tanto queria que germinassem. E assim se conclui habilmente um filme que é poderoso e difícil de assistir, mas cuja prestação de Vanessa Kirby acaba por elevá-lo a outro patamar.