Artigo de Opinião

Faz de conta que Nova Iorque é uma cidade e outros contos

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Comecei a ver esta mini série sem sequer saber quem era esta senhora de óculos redondos, risca ao lado dividindo o seu espesso cabelo preto, de agreste timbre de inconfundível fumadora e de uma ligeira falha nos dentes cujo sorriso faz relembrar o ator Andy Samberg.

Em sete episódios rendi-me à naturalidade de Fran e já só queria convidá-la para um chá e oferecer-lhe um livro (correndo o risco de ser insultada se esta viesse a perceber de que não se tratava de um bom escritor).

Entre cenários variados – um bar onde fala com Scorsese, uma sala de espetáculos em Nova Iorque onde é interpelada com questões da audiência, um Night Show em que é entrevistada por diferentes apresentadores, uma sala com uma réplica da cidade de Nova Iorque, ou, apenas, o metro – Fran discorre sobre a cidade que escolheu, os seus problemas, as suas virtudes, as coisas que nunca mudaram e as mudanças que as gerações vindouras enfrentarão.

Enquanto esta explosão de criticismo se dá, Martin conduz Fran pelo labirinto que é o pensamento e juntos vão percorrendo vários cenários tendo sempre a cidade de Nova Iorque como pano de fundo.

Mas nem tudo é uma carta de amor-ódio à cidade que nunca dorme (e que não a deixava dormir nos anos 70, tal era a dificuldade em ter aquecimento nos apartamentos), em cada episódio é explorado um tema que vai sendo desfolhado através de memórias de infância, inquietações, meras exposições triviais da realidade ou de opiniões de quem sempre soube que os livros eram o único lugar para chamar de casa.

Um reparo delicioso: Martin Scorsece não se contém perante o apontar das câmaras e, de cada vez que Fran intervém, descose-se em gargalhadas que contagiam além do ecrã. A relação de cumplicidade entre ambos é notória e sente-se pelo natural fluir das conversas. Ainda assim, o mais curioso é que nenhum se recorda como se conheceu.

“Provavelmente foi numa festa, eu ia a muitas festas. Muitas mais do que o Martin. Por isso é que ele fez muitos filmes e eu escrevi poucos livros.” atira Fran, numa tentativa de localizar o momento em que se deu o encontro. Acrescentou ainda que quando se cruzavam ficavam horas a falar e assim se foi consumando uma troca de experiências que os conduziu à vontade de pregar uma boa nova ao mundo: o melhor da vida é poder estar com quem se gosta, deixando o tempo correr.

Dois norte-americanos conhecem-se, um tem ascendência italiana e a outra é judia. Duas pessoas encontram-se num bar e falam de como é romper com as súplicas alheias, de como é apaziguador ser-se o que se é, porque se pode.

Gostaria que nesse bar o tempo não passasse para que pudesse escutar Fran a desmistificar mais uma teoria, ou simplesmente a fazer uma piada sobre o cheiro do metro de Nova Iorque e ver Martin a derreter o rosto de tanto rir para, no fim, terminar com as sobrancelhas sobre-erguidas de entusiasmo pela próxima piada.

Num momento em que se torna difícil desmistificar o que é orgânico ou de plástico, ouvir simplesmente o que é não podia ter um efeito mais reparador para o espírito. E é apenas isto : se a realidade for tabu o que ignoramos protege-nos da infâmia ou aguça o desassossego?

Preferirei sempre socorrer-me a esta análise crua que Fran adota que por espelhar tão bem quem somos e onde nos movemos nunca deixa de ser cómica. Quando nos revemos, percebemos que somos feitos da mesma matéria e que as nossas autorrepressões não ficarão para contar a história.

Esta é a de dois amigos, uma cidade, e o amor, entre cada um deles.

Artigo da autoria de Márcia Branco

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