Crónica
Made You Look: quem matou a arte?
Agulha no palheiro
Suponha-se que o destino de uma das galerias de arte mais conceituadas depende da habilidade de uma pessoa normal distinguir o criador destas duas obras. Uma delas representa uma obra de arte pintada pelo artista expressionista abstrato Mark Rothko, a outra é uma cópia fraudulenta do estilo de Rothko. Qual é qual?
A resposta correta seria que a primeira imagem corresponde, efetivamente, a uma obra legítima enquanto a segunda representa a obra forjada. Mas é normal não saber a resposta. Nem os mais sofisticados especialistas conseguiram distinguir a obra de arte da fraude, quando foram chamados para o fazer. De facto, uma combinação de erros semelhantes permitiu que a obra falsificada fizesse parte de uma mixórdia de obras forjadas, que foram vendidas, no total, a 80 milhões de dólares. Assim, foi concretizada a maior fraude cometida na bolha artística dos ultrarricos estadunidenses.
O documentário original da Netflix, Made You Look: a true story about fake art (2021) relata, exatamente, os eventos que antecederam o escândalo e inevitável ruína de uma das galerias de arte mais ricas e influentes da cena artística americana: a galeria Knoedler (1846–2011), que havia sobrevivido durante 165 anos.
Ao longo dos 94 minutos de documentário, discute-se a inocência (ou, talvez, falta dela) de Ann Freedman — curadora e diretora da galeria, apanhada numa teia de mentiras engendradas por um casal contrabandista (Glafira Rosalez e José Carlos Díaz) e pelo artista que trabalhou para eles e que cometeu as fraudes, Pei-Shen Qian.
De um lado temos Freedman a lutar pela sua inocência, enquanto vários especialistas de arte – desde a ciência forense a críticos – juram ser incompreensível (e conscientemente problemática) a forma como a ex-diretora da Knoedler acreditou na legitimidade destes quadros fraudulentos, tendo acabado por vendê-los por preços quase inconcebíveis. A obra-fraude supracitada, havia sido vendida por 8.3 milhões de dólares.
Contudo, é a repentina transformação das opiniões dos especialistas e apreciadores aquando da descoberta da realidade acerca das obras que iremos analisar aqui.
A verdade é que, outrora, os especialistas assumiram que aquelas obras eram sublimes, mas todo esse estatuto rapidamente mudou quando foi revelado que artistas como Rothko, Pollock, Motherwell e muitos outros nunca teriam pintado aquelas obras.
Poderíamos argumentar que as obras deixaram de ter valor, simplesmente, pelo facto de serem fraudes, cópias feitas, sobretudo, com más-intenções. É, sem dúvida, plausível não querer ter uma obra de arte fraudulenta na sala de estar, não querer ser enganado e persuadido a comprar um produto que não representa o que foi acordado entre vendedor e cliente. No entanto, é importante notar que todos os colecionadores dispostos a comprar esta arte e todos os peritos chamados à ação, davam ênfase a dois aspetos: à raridade da obra e à beleza do trabalho em si.
O próprio Christopher Rothko, filho de Mark Rothko, olhou para a obra ilegítima e proclamou que era “linda”, dando a confirmação necessária para Ann Freedman de que aquela se tratava de uma obra canónica do seu pai – “he spent an half hour looking at it, back and front, and then pronounced it beautiful”. Ou seja, durante uns momentos, na opinião destes colecionadores, esta arte valia por si própria.
Até deixar de o fazer. O que significa, então, para a arte quando nem os mais sofisticados, mais educados, mais abastados peritos, admiradores, colecionadores, curadores não têm a certeza do que gostam?
O que é que acontece à arte quando ela é tomada apenas pelo seu contexto, pela sua história, por quem a criou e não por si mesma?
E se a arte tiver valor pela sua historicidade, não teremos agora distância histórica suficiente para afirmar que as obras fraudulentas em questão podem ser consideradas arte pela delicada e complicada posição que expõem sobre o mundo artístico? Não é exatamente a partir dessa lacuna do panorama artístico dos ultra-ricos que artistas como Banksy lucram? Até que ponto pode o ego ferir a arte?
Murais de Seagram
É curioso notar que Mark Rothko nunca fora dado a demonstrações de ostentação. De facto, a maior comissão que o artista americano (mas natural da Letónia, quando ainda fazia parte da Rússia) alguma vez recebeu, foi, também, a única comissão que o mesmo cancelou.
Em 1958, o restaurante Four Seasons, localizado em Nova York, ofereceu ao pintor 35,000 dólares para pintar um mural com cerca de 46 x 55 m². Ninguém entende porque é que Rothko aceitou tal comissão, visto que era um homem conhecido pela sua frugalidade. Não obstante, o seu grande objetivo para este trabalho era experimentar uma paleta escura e tons pesados, capazes de fazer chocar e perturbar o mecenato e os clientes do restaurante. Acontece que, pouco antes da sua obra estar pronta, após ter agendado uma refeição na localização exclusiva, e de lá ter comido, Rothko decide cancelar a comissão e a obra acabou por ser enviada para outras instituições.
Será, para sempre, um mistério o que terá acontecido no restaurante que fez com que o pintor descartasse a comissão. Mas a verdade é que Rothko, eventualmente, chegou a uma conclusão:
“Alguém que come aquele tipo de comida, por aquele tipo de preços, nunca olhará para um quadro meu” – Mark Rothko
Sabendo a opinião que o próprio Mark Rothko tinha sobre a cultura de ostentação dos ultra-ricos, será sempre interessante colocar a questão sobre qual seria a sua reação, caso tivesse conhecimento do que as suas obras significaram para Knoedler, uma galeria cujos alicerces assentavam, precisamente, num certo sentido de pomposidade e elitismo.
Nabokov
Olhemos para o dilema através da literatura. Aqui, questões de autoria raramente passam por fraudes semelhantes. Em 1980, foram publicadas várias das lições sobre literatura (Lectures on Literature) que o autor Vladimir Nabokov (1899–1977) ensinou no seu tempo em Wellesley e Cornell. No capítulo “Good Readers and Good Writers”, Nabokov explica: “devemos sempre recordar que a obra de arte é invariavelmente a criação de um novo mundo, sendo que a primeira coisa que devemos fazer é estudar esse novo mundo o mais detalhadamente possível, abordando-a como algo completamente novo, que não tem quaisquer conexões óbvias com os mundos que já conhecemos.”
Embora Nabokov estivesse a falar especificamente de literatura, é pertinente abranger o significado a “obra de arte”. E, de acordo com esta opinião (que não é rara, nem inédita – por exemplo, o movimento esteticista tinha como principal tese que a arte vale por si mesma, sendo que a vida imita a arte) podemos inferir que a forma como todos estes peritos altamente treinados e educados olham para arte, num sentido geral, é, por si só, uma forma perigosa de analisá-la, uma forma que dá asas a inúmeros mal-entendidos e que, de certa forma, permite fraudes.
Todas as vítimas envolvidas neste escândalo falharam em olhar para a arte por si só.
Todas se focam apenas no estatuto de quem pensavam ter sido quem a criou, no que achavam ser o significado da obra e, consequentemente, no investimento que possui-la significava. Tinham conhecimento prévio da intenção de Rothko com a sua arte, que afirmava que a sua inspiração eram “emoções humanas básicas — tragédia, êxtase, ruína, e assim por diante”. Conlcui-se assim que a resposta emocional destas pessoas estava pré-programada. Então, não é chocante terem-se convencido a si mesmas, ao início, de que a obra falsa de Rothko era sublime?… Toda a espontaneidade das suas reações havia sido despojada.
Compreende-se, por essa razão, mais tarde, que todos estes elogios não passaram apenas de um sintoma do culto da celebridade, de uma ilusão de um fragmento do mundo anterior. Seja como for, foi considerada uma obra de arte, foi vendida e celebrada por ter, precisamente, “conexões óbvias com os mundos que já conhecemos”.
Quem matou a arte?
Olhando de novo para o documentário. Numa determinada altura, aquando das audiências no tribunal para apurar as consequências desta fraude, a obra falsa de Rothko em questão é exposta. Os entrevistados riem-se do facto de que se passou algum tempo a determinar para que lado era suposto estar virada a obra. Se o bloco vermelho ficava em cima, se ficava em baixo: ninguém sabia. Mas havia a preocupação de pôr a obra devidamente colocada. No entanto, se a mesma não tivesse qualquer valor, esse aspeto não deveria ter sido um problema.
A verdade é que este comportamento aparenta ser uma espécie de admissão ligeira e inconsciente de que a obra pode ter sido vista como uma construção artística – que derivou de um propósito real e não de uma falsificação feita de forma completamente aleatória. E é negar estas evidências que mata a arte e confere espaço à fraude para existir. Por muito que artistas e autores tentem, parece ser virtualmente impossível para o público geral e, especificamente, para o mundo elitista da “alta arte”, tomar a obra de arte pelo que ela é. Porque se a arte for apenas o produto final e não a sua historicidade, perde automaticamente o valor monetário exorbitante, perde-se o motivo para se investir nela.
Esta conexão fraudulenta com a arte, não só derrota o propósito, como afunila as possibilidades de aprendizagem, de novos moldes, de experimentação. Afunila as chances para novos artistas que não terão a mesma visibilidade como obras falsas e, no entanto, bem-sucedidas pela premissa de terem sido construídas por alguém previamente celebrado e estabelecido como um cânone. Fraude é um mero sintoma de uma patologia pré e pós-existente.
Artigo da autoria de Cássia Íris