Cultura

Franz Schubert – Der Lindenbaum: A Tília ou A Perda da Felicidade

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A primavera chegou há alguns dias, e, por isso, nada melhor do que pensar no papel das árvores na vida interior das pessoas e na própria música. O sujeito poético de “Winterreise”, apesar de marcado pela paisagem gelada, é também o louco que sonha com flores no inverno, e conta toda uma história ao vislumbrar uma simples tília.

 

By the well, before the gate,

stands a linden tree;

in its shade I dreamt

many a sweet dream.

 

In its bark I carved

many a word of love;

in joy and sorrow

I was ever drawn to it.

 

Today, too, I had to walk

past it at dead of night;

even in the darkness

I closed my eyes.

 

And its branches rustled

as if they were calling to me:

‘Come to me, friend,

here you will find rest.’

 

The cold wind blew

straight into my face,

my hat flew from my head;

I did not turn back.

 

Now I am many hours’ journey

from that place;

yet I still hear the rustling:

‘There you will find rest.’

 

“Der Lindenbaum” significa, em português, “A Tília”, e faz parte da obra Winterreise, de Franz Schubert. Winterreise é um Ciclo de Lieder, ou seja, cada peça que nele figura é como o capítulo de uma história. A obra é uma combinação entre as melodias de Franz Schubert e os poemas de Wilhem Müller, escritos originalmente em alemão.

A narrativa da Viagem de Inverno é a de um sujeito poético que, após se ver rejeitado pela amada, se despede dela com um “Boa noite” deixado à sua porta. A partir daí, começa a Viagem de Inverno, e o sujeito poético assume o papel de viandante (“Wanderer”, como na Fantasia Wanderer, também de Schubert): ele sabe que, na verdade, começa uma viagem sem destino, uma viagem que tem mais a ver com a sua própria vida interior do que com o que está à sua volta. Podemos dizer que a paisagem (simbolizada pelas melodias do piano) reflete aquilo que o sujeito poético sente, espelhando o frio e a dor da rejeição amorosa. Aliás, aquilo que se vê ao longo da obra é o gradual aumento do sofrimento por ele vivido, existindo até um momento em que as suas lágrimas congelam.

Aquilo que dita “Winterreise” não são tanto os lugares por onde passa o viandante, mas sim aquilo que eles significam para ele. Neste momento da obra, o viandante chegou a um poço e viu uma tília. Ao olhar para ela, logo se lembrou dos sonhos bons que teve enquanto descansou à sua sombra. Também se lembra de ter gravado no seu tronco o nome da sua amada e outras palavras de amor. Confessa que tanto na alegria como na tristeza a tília sempre o atraiu, sendo por isso uma fonte de conforto. Assim, a tília pode querer simbolizar a amada: o ato de gravar no tronco palavras de amor faz alusão às palavras de amor que o sujeito poético disse à sua amada, e que marcaram também o seu coração, mesmo que agora ela já não esteja com ele.

Apesar de todas as boas memórias, o viandante não conseguiu evitar fechar os olhos quando a viu, mesmo que fosse de noite e estivesse naturalmente escuro. Isto pode querer sugerir que, neste momento de sofrimento, lhe é difícil encarar a felicidade que sentiu no passado, como se o vislumbre da tília o lembrasse daquilo que perdeu. Como se a memória da amada fosse algo difícil de suportar. A tília apercebeu-se disto e os seus ramos moveram-se com o vento, assegurando-lhe que ao seu lado sempre seria possível encontrar paz. Aqui, a tília já tem um outro símbolo: a paz, conseguida através da morte. Poderá simbolizar o desejo de, um dia, ser sepultado debaixo da tília, outrora um lugar de felicidade.

Mas o viandante, ao sentir o vento na sua cara e a arrancar-lhe da cabeça o chapéu, não fez caso e não voltou para trás. A tília pode, então, ser o símbolo do passado e da felicidade perdida: o tempo que passou nunca mais volta, como se a felicidade do sujeito poético fosse uma coisa que ele sabe que não voltará a sentir. Como não consegue deixar de pensar no conforto oferecido pela tília mesmo estando ele a várias horas de viagem, é como se a felicidade, apesar de ser uma coisa do passado, residisse sempre no seu pensamento. Assim, a felicidade será, para ele, apenas um reflexo da sua consciência, e não uma realidade.

Dadas estas razões, percebemos claramente o papel da paisagem na vida interior do sujeito poético, invocando não apenas um significado, mas vários: uma tília significou a amada, a morte, o passado e a felicidade deixada para trás. A paisagem que adquire significados no interior do sujeito poético é representada pelo piano e pelas suas melodias, e esta representação é bastante clara logo no início do lied:

Estes primeiros 7 compassos ilustram o vento nas folhagens das árvores, nomeadamente através das tercinas. No segundo compasso, a passagem de Dó para Si pode querer mostrar a intermitência do vento e da natureza.

O momento em que o sujeito poético vislumbra a tília é representado pela passagem dos ritmos rápidos para um ritmo mais lento e mais estático, como é o do compasso 9. Este lado mais estático sugere as próprias raízes das árvores, que estão bem assentes na terra. Mesmo o facto de a escrita ser mais vertical (passamos de notas soltas para acordes) retrata o tronco da tília, como se os próprios acordes fossem árvores que têm uma raiz no baixo.

No compasso 25, vemos uma mudança para a tonalidade paralela: passamos de Mi Maior (“A Tília” tem uma tonalidade maior, o que demonstra de novo que ela é um símbolo da felicidade) para Mi menor, o que é uma mudança abrupta, quase antitética. Por causa disto, percebemos que realmente não é fácil atribuir um só significado à tília, porque a própria peça mistura uma tonalidade maior com a sua correspondente tonalidade menor. Ela é, então, um misto de alegria e tristeza: alegria por simbolizar os bons momentos do passado, e tristeza porque esse passado já não existe e o futuro não promete a esperança. Aliás, o momento da mudança da tonalidade corresponde à altura em que o viandante confessa que teve de fechar os olhos para não encarar a tília. Corresponde ao momento em que a tília, um símbolo de prazer, também acabou por causar dor.

Após a terceira estrofe ter acabado, voltamos para a tonalidade maior, correspondente ao momento em que a tília se assume como uma fonte de conforto (a quarta estrofe corresponde de novo a uma melodia mais alegre e baseada em acordes).

A quinta estrofe corresponde à altura em que o vento tira o chapéu da cabeça do viandante sem que ele se volte para o apanhar, como que para mostrar que a tristeza está sempre à espreita. Aí, vemos que a peça se tornou mais dramática, porque voltaram os ritmos rápidos e usam-se notas repetidas no baixo, criando uma atmosfera de escuridão.

Na sexta estrofe, quando o sujeito poético reconhece que está longe da tília sem deixar de pensar nela, o ritmo no piano torna-se mais lento, mas o facto de já não termos simplesmente acordes como no início mostra a nostalgia da memória da tília e também a distância: o facto de já não termos uma escrita tão vertical mostra que já não estamos perto da árvore. A melodia faz lembrar a dos primeiros compassos, mas o ritmo mais fluido (ainda que mais lento que o tema do vento) prova que a árvore está longe. Ou seja, uma melodia semelhante com um ritmo diferente pode criar aqui a ideia de memória.

Para mostrar que o episódio com a tília terminou, a peça acaba com o tema do vento nas folhas das árvores, sugerindo a naturalidade com que as coisas boas passam na vida de uma pessoa e, ao mesmo tempo, a inconstância da memória.

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