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Caros Camaradas!: O desmoronar de um ideal inabalável

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A idade não é um posto. – Assim nos faz crer Konchalovskiy e a mestria que demonstra (ou continua a demonstrar) no seu mais recente filme Caros Camaradas!. Aborda um tema historicamente sensível, especialmente aos russos, não se ficando pelo relato dos factos mas propondo uma reflexão acerca do quão forte consegue ser a nossa devoção a um ideal. O resultado final, e como nos tem habituado, levou a renomeadas premiações.

Andrey Konchalovskiy, de 83 anos, um realizador nascido em Moscovo, irmão do também realizador Nikita Mikhalkov, tem uma filmografia que fala por si. Entre a sua relativamente extensa obra, são de lembrar “Casa de Loucos” (2002), “The Postman’s White Nights” (2014) e “Paraíso” (2016), todos premiados no Festival de Veneza, ora com o Leão de Prata ora com o Grande Prémio Especial do Júri. O seu novo filme “Caros Camaradas!” não foi exceção e levou a melhor na edição de 2020 do Festival de Veneza, onde venceu o Prémio Especial do Júri e foi nomeado para Leão de Ouro.

A junho de 1962, na cidade Soviética de Novocherkassk, no sudoeste da (atual) Rússia, aconteceu a Revolta de Novocherkassk ou, ressaltando o final violento, o Massacre de Novocherkassk. Vigorava o governo de Nikita Khrushchev no momento em que se adivinhava escassez e consequente subida dos preços de bens essenciais, nomeadamente alimentares. Para além disto, algumas condições de trabalho foram alteradas em fábricas locais, entre elas uma fábrica de locomotivas onde se instalou um ambiente crítico de greve de trabalhadores. Num culminar absolutamente trágico, a desordem foi travada com recurso à execução sumária e deliberada dos manifestantes. Fala-se que não foi o exército, quem procurava lidar com a revolta, o autor das mortes, em vez disso, elementos da KGB terão atirado furtivamente sobre os cidadãos. A atrocidade foi escondida, tendo o acontecimento e seu resultado sido divulgados somente décadas mais tarde.

Frame do filme “Caros Camaradas!”

A ação segue uma mulher (Lyuda) militante do partido comunista, apaixonada e comprometida com o ex-governo de Stalin, mas agora outra pessoa assumiu o lugar e as coisas começam a mudar. A todo o momento compara a União Soviética de Stalin (e da Segunda Guerra Mundial) com a de Khrushchev (e da Guerra Fria). Num assinalar de diferenças, a adoração que tem pelo antigo governo é alvo de dúvidas devido ao atual rumo da sociedade.

Primeiramente a fome. Um regime comunista não passa fome, mas amanhã haverá escassez de comida. Depois a felicidade dos operários. No comunismo os trabalhadores estão felizes, porém protestarão amanhã. Seguidamente o direito à manifestação e a proteção dos seus. O estado comunista ama os seus cidadãos mas hoje conteve-os assassinando-os. E no tempo de Stalin não era assim, o povo era feliz e sem fome. – Pensamentos e diálogos em que a personagem se vê frequentemente. Uma das conclusões inferidas é a de que a necessidade de aparentar sólida, a URSS, em tempo de guerra fria parece, para a política, mais importante que o socialismo e o bem-estar do povo; disto resultou a barbárie e subsequente encobrimento.

Por fim, é a sua maternidade alvo de ameaças. O desespero consome a mãe, que faz tudo ao seu alcance para conseguir encontrar a filha, perdida durante o alvoroço da multidão abatida. As questões são incessantes em tamanha aflição.

O filme tem importância documental e revela-se pessoalmente desafiador.

Coloca questões importantes como o quão imbatíveis são as nossas ideologias e também o quão distanciada pode estar a execução de uma ideia da sua forma teórica. Porque o uso da força bruta e a opressão do povo em nada têm que ver com a ideia de comunismo, atrocidades feitas por regimes que se dizem socialistas não são necessariamente socialismo, e a entreajuda para a prosperidade do povo na forma comunista nunca andará de mãos dadas com o assassínio da população para seu controlo.

A atriz detentora do papel principal é a mulher do realizador, Yuliya Vysotskaya que, não sendo a primeira vez que aparece num filme de Konchalovskiy, surpreende novamente com uma representação fabulosa. Os restantes atores também têm desempenhos de elevada qualidade.

Para a consumação visual do argumento, da autoria do realizador e de Elena Kiseleva, a direção de fotografia de Andrey Naidenov foi fundamental. Como em “Paraíso” (2016), o preto e branco de dimensões “aquadradadas” confere uma beleza especial aos planos de filmagem.

Produzido pelo próprio estúdio do realizador, o filme estreou recentemente em Portugal e ainda se encontra em exibição nalgumas salas.

Artigo por: Bernardo Vasconcelos

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